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25 da Abril | Largo do Carmo Lx. | img: arquivo RTP

25 de Abril – Cravos nas veias da cidade

Serão amanhã passados 40 anos desde aquela madrugada. Abril, 25, 1974, manhã cedo, como todos os dias dirigia-me para Sapadores, em companhia da minha irmã. Ela ficaria, como sempre no gabinete de projectos onde trabalhava, na Avenida de Berna e eu seguia para a então Escola Prática de Transmissões, onde prestava serviço. Durante o caminho estranhámos logo a emissão radiofónica. Não havia dúvidas, algo se tinha passado. Quando cheguei à Porta de Armas, já vinha com uma ideia sobre o acontecimento. Havia ebulição misturada com silêncio, uma sensação de alívio condimentado ainda com precaução. No centro de Comunicações, por onde passavam todas as transmissões rádio do Exército, a azáfama era indisfarçável. Na Central Telefónica monitorizavam-se ligações, tentando apanhar alguma mais comprometedora ou indicadora de reações das forças ainda hesitantes ou declaradamente defensoras do regime que ruía precisamente naqueles momentos há tanto tempo desejados. Ainda hoje não consigo relembrar muitos pormenores, porque na altura tudo também estava ainda muito incerto e cruzavam-se informações e notícias misturadas com teorias e deduções que emanavam dum sem fim de hipóteses que não eram boatos ou de boatos que apenas eram uma forma de imaginar o que se desejava para se evitar que tudo não passasse dum sonho. O ambiente era tenso e calmo ao mesmo tempo e as reuniões nos gabinetes sucediam-se com entradas e saídas dos oficiais mais activos libertando informações ou tentando colher confirmações das várias frentes da acção tomada pela madrugada.

Nessa noite já não saí. Todos estavam de prevenção nas suas unidades, apenas com excepção dos que se encontravam ainda a desenvolver missões no exterior. No dia seguinte, já com a situação mais controlada e com mais certezas do que dúvidas, foi-me atribuída uma missão. Eu era um jovem 2º Sargento radio montador, regressado há cerca de nove mesos de Angola onde tinha cumprido a minha quase única comissão de serviço no chamado Ultramar. Entregaram-me um salvo conduto validado pelo Conselho de Revolução, assim como uma lista de locais onde me deveria dirigir a partir do próximo dia. A missão consistia no desmantelamento de uma rede de telecomunicações da responsabilidade da Legião Portuguesa, que ligava os postos chave do Governo, em situações de emergência e que se destinava a manter o contacto entre as várias personalidades, nos locais em que cada um se deveria recolher caso acontecesse o que estava a acontecer ou outra qualquer calamidade. No dia seguinte, arranquei para cumprimento da missão, num jipe, acompanhado por um Cabo e um Soldado condutor.

Já não me recordo precisamente da ordem das deslocações, mas sei que fomos sucessivamente ao então Ministério do Interior, agora Ministério da Administração Interna, ao Bunker do Monsanto, nas instalações da Força Aérea, onde havia alojamentos especialmente destinados ao Presidente da República e ao Chefe do Governo, os quais não chegaram a ser utilizados, como se sabe. Outro local foi também o Quartel General da Legião Portuguesa, na Penha de França, onde hoje funciona a Direcção da PSP, mas também a Doca Pesca, onde existia também um posto de comunicação anexo ao Gabinete do Contra-Almirante Henrique Tenreiro, como se sabe, figura grada do Estado Novo e que tinha a responsabilidade pelo sector das pescas. Outra das localizações desta rede de comunicações de emergência estava situada no gabinete de Silva Pais, Director da PIDE-DGS, sendo esta uma das deslocações mais emocionantes, dado o especial significado deste corpo de polícia política e do facto de ter sido junto às suas instalações que se deram algumas das poucas mortes ocorridas durante o desenvolvimento da acção militar do MFA. Lembro-me que na parede do Gabinete, sobranceira à secretária daquele dirigente, se encontrava ainda a fotografia de Salazar. Na Avenida António Serpa, num 3º andar onde depois funcionou a primeira sede provisória do PCP e depois, da JCP, encontrava-se alojada uma pequena brigada da Legião Portuguesa que também estava equipada com um meio de comunicação desta rede. O local tinha já sido abandonado, mas no seu interior tinham ficado ainda impressos com as últimas mensagens recebidas naquele posto. Lembro-me de um cornetim e de um bastão em madeira também abandonados durante a fuga dos Legionários em serviço. A última deslocação foi a uma herdade nos arredores de Coruche, onde na casa agrícola, o dono da herdade alojara também um posto de comunicações, guarnecido por um Legionário que ainda lá estava, certamente para dar protecção aos latifundiários da região. O pobre homem, ele também um camponês que acumulava com a função de legionário, ainda lá se encontrava e estava lívido de medo de ser detido. Não tínhamos, porém, qualquer ordem para deter quem quer que fosse, apenas para desmantelar e recolher todo o material de comunicações, pelo que o sossegámos e o aconselhámos para ir para casa e não mais voltar ao local.

Foi este o meu primeiro contacto activo com o 25 de Abril de 74. Depois seguiram-se acções de dinamização cultural integrando equipas apoiadas pela 5ª Divisão, das quais me recordo de uma no antigo Teatro Adoque, ainda no seu primitivo barracão e outra na Escola Superior de Veterinária, onde hoje se ergue a nova sede da Polícia Judiciária, junto ao Liceu Camões. Passado pouco tempo ainda, a mobilização para Cabo Verde, onde permaneci no Mindelo, Ilha de S. Vicente, no Comando Militar, até à véspera da sua independência. A colaboração com forças militares do PAIGC que davam recruta a futuros militares Cabo-Verdianos, na Ilha da Boavista, instalando meios de comunicação do Exército Português. E daí para a frente a normalização, num país que procurava dar os primeiros passos com a Democracia. Uma nova realidade que nem sempre acertava o passo com as várias tendências de um povo que não estava habituado a ser livre. Cometeram-se erros?… Claro que sim! Excessos?… Sem dúvida!… É impensável não o admitir. A descolonização poderia ter sido diferente?… Era natural que esse fosse o desejo de todos os intervenientes, mas a vida e a história fazem-se dos factos que acontecem e não dos que gostaríamos que tivessem acontecido

Todos desejávamos, embora cada um à sua maneira, que Portugal tivesse trilhado outros caminhos e cometido menos erros, mas o perfeito é inimigo do possível e o possível é obra de homens e mulheres e não um guião que se escreve, ileso e isento de desvios ou rasuras. O voto, como instrumento de aferição de uma vontade colectiva e mecanismo de escolha dos que ganham legitimidade para gerir os destinos de um país, foi sucessivamente atribuindo essa responsabilidade a um conjunto restrito de partidos, a que convencionalmente se começou a chamar de bloco central, agora rebaptizado, como muitos outros conceitos que nos condicionam, de arco da governação e em vez de beneficiarmos de alternativas concorrentes, caímos num marasmo ou num pântano de alternâncias que secam toda a Democracia à volta das reais urgências e necessidades do país e dos portugueses. A legitimidade democrática acabou por ser atacada pela ilegitimidade política, o que significa que o poder ganho nas urnas tem de ser avaliado todos os dias e que os governos têm de prestar contas da execução do seu programa político, apresentado durante as campanhas eleitorais, permanentemente e duma forma transparente, sob pena de perderem autoridade, genuinidade e conformidade com a razão. E quando tal acontece, a Democracia não pode servir de disfarce nem de escudo à má conduta dos governantes.

Passados 40 anos depois da instauração da Liberdade e da Democracia, estamos numa situação que não deixa dúvidas, os governos vieram sucessivamente a perder esse carácter de honra e sentido do bem servir, chegando ao cúmulo de já nem procurarem respeitar a vontade popular expressa nas urnas em consonância com um programa, entretanto adulterado e manipulado, mas sim abdicarem da soberania em favor de interesses económicos e mesmo políticos de grupos financeiros, os agora idolatrados e temidos mercados, e mesmo de potências estrangeiras que já nem sequer respeitam a pluralidade, individualidade e identidade de cada membro duma Europa arrogante e castradora, que se impõe pelo seu poder económico e por assustadores projectos de hegemonia dum espaço europeu que já não corresponde ao sonho de quem o idealizou e concebeu, no pós guerra, como vacina para uma supremacia que se mostrou cruelmente desastrosa para o mundo.

Olho para trás e não consigo imaginar o futuro, porque o presente se confunde com o passado e este ameaça invadir de novo aquilo que nós pensámos vir a ser o futuro. Tudo nos confunde e nos enche de expectativas sem luz ao fundo do túnel e até mesmo sem túnel. O que vislumbramos é um enorme céu aberto carregado de nuvens negras que não permitem que acordemos com o sol, mas sim que nos contentemos com o ar que sofridamente arfamos, e esse mesmo irrespirável, único elixir que nos mantém vivos, mas prisioneiros da sua impureza.

Estamos cansados desta interrupção da Democracia, desta selvajaria política, deste verdadeiro atentado ao direito de sermos felizes. Não foi para isto que um punhado de lutadores, militares, povo-povo, torturados e mesmo executados, se sacrificaram para nos dar o sopro da vida numa madrugada de Abril.

Onde estás manhã de cravos nas veias da cidade?… Que homens deixaste ultrajar um povo de que se dizem irmãos!?…

Ernani Balsa
“escreve sem acordo ortográfico”

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Serão amanhã passados 40 anos desde aquela madrugada. Abril, 25, 1974, manhã cedo, como todos os dias dirigia-me para Sapadores, em companhia da minha irmã. Ela ficaria, como sempre no gabinete de projectos onde trabalhava, na Avenida de Berna e eu seguia para a então Escola Prática de Transmissões, onde prestava serviço. Durante o caminho estranhámos logo a emissão radiofónica. Não havia dúvidas, algo se tinha passado. Quando cheguei à Porta de Armas, já vinha com uma ideia sobre o acontecimento. Havia ebulição misturada com silêncio, uma sensação de alívio condimentado ainda com precaução. No centro de Comunicações, por onde…

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