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ANATOMIA DA CRISE

Hernani_Balsa

Ernani Balsa

Crise, deve ser o vocábulo mais utilizado nas conversações diárias dos portugueses. Hoje em dia, qualquer conversa nos leva a ela e nunca a culpa de qualquer coisa teve uma paternidade tão óbvia e inquestionável. Como raramente acontece, neste caso a culpa não morre órfã e muito menos solteira. A crise carrega em si a culpabilidade de tudo o que nos acontece, mas no fundo, com tanta unanimidade na atribuição da culpa de tudo à crise, de quem é, afinal a culpa dela própria?

Ao concedermos à crise uma identidade própria, ela acaba por se dissipar e escapar ao julgamento das culpas que lhe estão a montante e deixam imunes, num estado de inocência, por falta de provas, os verdadeiros culpados deste estado de depressão e recessão que todos sentimos.

A crise não é definitivamente uma entidade própria, mas antes a soma de muitas e diversificadas crises. Antes de mais, a crise de cada um de nós, das pessoas que para ela contribuíram e das que com ela sofrem. A crise é uma miríade de pequenas crises que nos cercam, condicionam e alienam. A crise dos princípios e valores, da honra, da ética, do sentido de responsabilidade e do sentido de serviço público, da cidadania. A crise da nossa apatia e desinteresse pela comunidade e a crise da intervenção activa na sociedade. A crise de exigência connosco e com os outros. A crise do sentido da família, seja ela de que tipo for, mesmo para quem a família é apenas o indivíduo, a crise da falta de tempo para os nossos filhos, a crise do divórcio entre a família e a escola, a crise do individualismo exacerbado, do egoísmo, da ânsia incontrolável pelo sucesso.

A crise política não é mais do que a soma de muitas destas crises. Os políticos são pessoas, e pessoas que surgem da comunidade que todos partilhamos e quando os acusamos, e com razão, estamos a reconhecer que não fomos suficientemente exigentes e interventivos nas nossas escolhas. Não fomos actuantes e permitimos que energúmenos, de quem não vou aqui citar nomes, porque eles próprios se lerem isto, se vão reconhecer, se sentiram à vontade para exercerem a sua ganância desmedida. O expediente de não se olhar a meios para se atingirem fins, que apenas resultam no escandaloso favorecimento próprio, de muitas figuras gradas e pseudo responsáveis do nosso país, tornou-se quase uma norma, que no entanto só está disponível a quem controla os instrumentos do poder, político ou económico. O exercício desse tipo de poder, por assim dizer, esteriliza qualquer mancha de irregularidade, porque o exercício da justiça, está ele próprio, construído por leis e normas que foram feitas no pressuposto de tudo ocultar, justificar ou manipular, de modo a lavar os delitos, tornando-os legais e sustentados pelas entrelinhas da lei.

Mas a crise económica, considerada a mãe de todas as crises, que deriva duma entidade fantasmagórica, apelidada de mercados, só existe porque há pessoas que, propositadamente a alimentam e espalham, apenas com o intuito de obterem lucros e poder desmedidos. Mas, mais uma vez, o que está por detrás de tudo isto, são pessoas. Os mercados não têm mente nem alma. Os mercados são as armas, essas sim, de destruição maciça, que eles utilizam para dominar e mesmo exterminar pessoas, povos e mesmo nações, sem um esgar de sofrimento, nem uma réstia de arrependimento. E quem, em cada nação, diz compreender a dinâmica do mercado, a sua capacidade reguladora e a sua vocação geradora de riqueza e progresso, é tão energúmeno e responsável, como o pior dos carrascos desse intocável poder do dinheiro. As pessoas, certas pessoas, que nós bem conhecemos como responsáveis pelos destinos de todo um povo, até podem ser boas pessoas, na sua génese e praxis quotidiana, mas quando acreditam e defendem coisas más, propalando-as a quem governam, como coisas boas, são mais detestáveis ainda. Se ao menos pudessem praticar a sua ideologia, apenas para eles próprios, mas não, os efeitos secundários da sua ideologia ultra liberal espalham-se, qual linfomas cancerígenos que nos afectam e destroem a todos.

A crise da nossa crise só poderá ser combatida quando curarmos as nossas próprias crises e não permitirmos aos outros que nos contaminem com as suas. Quando as conseguirmos combater em toda a linha e não permitirmos qualquer contágio. Quando formos tão esclarecidos e determinados que saibamos dizer não, mesmo que ainda não saibamos dizer como… É nesse dilema que os poderosos nos mantêm como reféns. Amedrontando-nos sempre e exigindo que saibamos dizer “como”, antes de dizermos “não”. Não! Não tenhamos receio de dizer definitivamente não. Não queremos esta sociedade! O “como” virá depois ou então… nunca!…

Por: Ernani Balsa
“escreve sem acordo ortográfico”

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