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AVALIAÇÃO: TRÁGICO EQUÍVOCO

J. Antunes de Sousa

J. Antunes de Sousa

Todos – pais, professores, ministros, deputados, presidente – todos enchem a boca com ela, porque falam dela à boca cheia. Todos, professores, sindicatos e ministério, se excitam na altissonante apologia da educação. E, no entanto, não me parece que haja, infelizmente, assim tantas razões para tal excitação.

Desde logo, porque a educação de que todos falam e a que todos se rendem assenta no dogma perigoso e pouco entusiasmante de que a natureza humana é originariamente má – é preciso torcê-la e forçá-la ao bom caminho.

Porém, talvez fosse mais adequado e certamente mais reconfortante admitirmos inclinações e propensões, porque, no plano da existência, todos somos diversos nas memórias e nas experiências, mas que o somos em referência a uma matriz ontológica, essencialmente boa.

Da mesma forma que nenhuma onda é rigorosamente igual à outra, assim também nós, os seres humanos – todos somos absolutamente únicos. Na irrepetibilidade biológica e na singularidade espiritual dos que existiram, dos existentes e dos que hão-de existir reside o nosso milagre e mistério, mas também o nosso mais fascinante desafio.

No contexto da Transnatureza cada um de nós tem um texto a escrever, uma canção para interpretar. E deve fazê-lo com o timbre único da sua voz e com o sentir inimitável da sua alma. Mas aqui justamente o problema: se somos todos diferentes porquê um sistema assente na vã pretensão de nos tornar iguais? Isto tem um nome, que curiosamente também anda na boca de toda a gente: violência – que nada há mais violento do que forçar a Natureza, infinitamente diversa e criativa, ao magma cinzento e desvitalizado do sempre igual. Isto é o que faz o sistema oficial de ensino, pretensiosamente entendido como de educação, quando educar não é impor nada de fora mas provocar e propiciar que tudo venha de dentro de cada um – o verdadeiro educador é um parceiro e um facilitador para a manifestação dos talentos específicos de cada qual.

Ora o que é trágico é que se queira avaliar, através da ilusória satisfação da medida e dos números, não o modo como os professores se empenham em respeitar e fomentar o diverso e a criatividade, mas como se aplicam a impor a disciplina do igual – todos têm que passar pelo funil da instrução pública. Só que isto não é educação, é arregimentação. Não é formação, é formatação.

Sejamos claros, portanto. O que, honestamente, deveria ser objecto de avaliação devia ser o sistema, mas, em vez disso, que é o essencial, faz-se uma guerra dos diabos para se avaliar o circunstancial, o acidental, que é a forma como cada um dos agentes se sujeita ao sistema e o santifica. Isso mesmo: esta avaliação, para além de ser uma campanha de fidelização, é também e talvez sobretudo um exercício de dogmatização, de canonização do actual sistema de ensino, como se os meninos de hoje fossem exactamente iguais aos de há cinquenta anos – além de o processo assentar nas antigas práticas simoníacas que, na Igreja Cristã, forneceram, como se sabe, o mote para a Reforma Protestante: trocar a indulgência do sistema por dinheiro. Eles, os meninos, como gostava de dizer Agostinho da Silva, não são iguais aos de ontem nem, hoje, são iguais entre si.

Esta avaliação escora-se no pressuposto incrivelmente presunçoso e lamentavelmente absolutista de que este sistema oficial de ensino é não só indiscutível como até venerável.

O irónico de tudo isto é que, enquanto os actuais professores, corifeus do sistema uns, críticos dele outros, vão tentando safar a pele nesta refrega e o ministro se empenha em sacudir a água do capote, são os alunos de hoje, os meninos a quem se pretende cruelmente formatar, em vez de ajudar a formar, que irão fazer dinamitar amanhã este sistema que os irritou e violentou, dando, assim, corpo a um novo paradigma, ancorado não no desígnio da uniformidade que exclui os supostamente mais fracos por não evidenciarem os talentos decretados pelo gabinete ministerial, mas no desígnio da diversidade que promove a riqueza includente de todos – o desígnio, afinal, do próprio universo.

Felizes aqueles que puderem testemunhar esta revolução – a verdadeiramente decisiva.

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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