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A Glosa do Tacho

J.Antunes de Sousa

J.Antunes de Sousa

Antigamente eram de barro, agora são quase todos de inox – muito mais refinados e sofisticados, para não deixar restos do refogado agarrados ao fundo. Os tachos de agora são, para nossa arrelia e desconsolo, mais bem poços sem fundo, autênticos sorvedouros dos recursos que se suporia destinados a providenciar à panela da sobrevivência de cada um. E a propósito de fundo do tacho, eis que virou moda converter alguns desses tachos em “fundos” para que, assim, alguns, uns tantos e os mesmos de sempre, possam rapar o fundo sem deixar rasto ou suspeita.

Veja-se o que se está a passar no inefável mundo da bola: o Benfica, por exemplo, acaba de vender dois dos seus jogadores a um exótico e misterioso Fundo em cujos desígnios comerciais se afundam as expectativas dos sócios e adeptos, para não falar na sinuosa e indecifrável relação laboral desses jogadores: de quem dependem agora? Do treinador? Do presidente do clube que os vendeu? De um rosto fantasmático de um títere internacional que investiu no dito fundo? Eis a mais recente e grave machadada no futebol: são os famigerados mercados a mercantilizar a alma e o talento, tudo o que ainda e porventura restava, dos principais actores – os futebolistas. E assim se acaba de desumanizar uma actividade que já pouco de humano vinha tendo, ao mesmo tempo que se abre espaço para todo o tipo de engenhosas e imaginativas jogadas financeiras! E tudo isto enquanto os protagonistas institucionais, os clubes, definham e secam à míngua.

Mas, enquanto se criam por aí fundos para aparar as jogadas fora das quatro linhas, o Estado fez uma outra jogada: acabar com os fundos de pensões que, em devido tempo, foram constituídos para garantir um complemento de pensão a quem mais dele se imaginara precisado.

O Estado espreitou (espreitar é o jeito particular e feio do larápio reles!) lá para o fundo e disse para consigo: aí está mais um “fundo” que podemos rapar até nada no fundo deixar – e com esses restos bem rapados, é mais uma assalto ao pouco que restava!

Vejamos: num país de tachos, o que não falta é taxas, sendo certo, porém, que taxa não é bem o feminino de tacho, mas antes uma espécie de colher de pau, esse instrumento de culinária também usado numa certa violência doméstica e, pelos vistos, agora, também universitária, com que o Estado se aplica a rapar os ditos tachos – não os de alguns, gordos e anafados, e que engordaram precisamente à custa dos tachos que o Estado generosamente lhes ofereceu, mas os tachos de migas dos pobres desgraçados que passaram toda uma vida a rapar privações, se não mesmo fome, para poupar umas míseras côdeas para um sustento numa velhice de espondilose e artroses e que, agora, esse Estado, sempre tão folgazão em tachadas de padrinhos e compadres, tão avara e desavergonhadamente vem rapando.

O que mais impressiona neste Estado é mesmo esta sua condição vampiresca: sempre à coca de uma pinga de sangue que possa ainda sugar!

Num país de tachos e encarnando zelosamente a pequenez do pilha-galinhas, que caracteriza o chicoespertismo de uma gente invejosa, este nosso Estado, que é sobretudo o estado a que isto chegou, especializou-se na expedita tarefa de rapá-los. Sim, a característica mais notória da sua condição selvagem, é, de facto, a rapacidade – a mesma que tornou famoso o necrófilo comportamento dos abutres!

Esta voracidade glandular do Estado é o oposto da temperança que o deveria impor ao respeito e consideração dos cidadãos – ele exibe a psicologia daquele velho merceeiro da Fuzeta, de lápis atrás da orelha (este Estado só tem orelhas, não tem ouvidos!): não a estratégia, não a previsão, não a vista de longo alcance, mas a conta certa, com prova dos nove e tudo, para o quilo de massa ou arroz que é o que está a fazer falta para iludir o estômago em fugaz almoço. Facturar nem que seja só qualquer coisinha… mesmo que seja rapando uns cobres no “luxo” de uns tipos de bata branca que se entretêm a fazer experiências em tubos de ensaio e a andar por aí a mostrar que, num país assim, há quem possa ombrear com os melhores de lá de fora.

Ora, com mentalidade assim, tão míope e tacanha, admira lá que nem o Joan Miró escape? Quantos Estados se empenhariam, sem hesitar, em guardar como acervo colectivo um conjunto tão precioso, um tão impressivo documento do modernismo, um tão valioso e intemporal legado do pintor catalão?!

E o que fez este nosso Estado, meus amigos? Correu, primeiro, a repor no BPN os incontáveis milhões que uns tantos tachistas raparam com a desenvoltura de abutres esfomeados e, agora, para facturar umas dezenas de milhões, vai, a correr, desfazer-se de um património da Humanidade, de um valor culturalmente incalculável, dando, assim, mostras de uma patibular boçalidade, só travada in extremis por algumas vozes do bom senso e do pudor e a que se juntou, imaginem, a própria leiloeira.

É bem certo: a vista de longo alcance do abutre só dá para avistar e devorar a presa morta.

E eis outra característica deste Estado: só bate em quem se não pode defender. Até porque a maioria dos que quer ver mortos já vivos não estão – que a este arremedo de vida já vida se não pode chamar. Eles vagueiam, de olhos vazios de futuro, por este jardim de sombras em que o país se tornou.

Enquanto isso, o abutre vai continuar nesta sua fúria de rapa-tachos… tudo, porém, menos taxar os grandes tachos! Não, que isso faria perigar o tacho do poder!

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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