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O DEZEMBRO DO NOSSO FINGIMENTO

Ernani Balsa

Ernani Balsa

Dezembro é um mês de fim de ciclo, um tempo de balanço e de reflexão por toda a carga mística que envolve. Dezembro é natal e natal é uma coisa que sem me incomodar, me apoquenta e me faz ficar deprimido, nem eu sei bem porquê… A nossa cultura judaico-cristã associada à cultura oficial do Estado Novo incutiu-nos epidermicamente certos valores, dúvidas, incertezas e mesmo crenças não totalmente resolvidas que nos baralham o departamento sentimental do nosso cérebro e mais ainda, daquele beco escuro e dizem que também resplandecente, da nossa alma, esse mistério alado que residirá dentro de nós, não sei se mais para os lados do pâncreas ou se diluído no nosso sistema sanguíneo. O que é certo é que ficamos, durante esta época, menos imunes a certas pieguices. Eu pelo menos, fico e isso baralha-me o meu equilíbrio, que deveria estabelecer uma grau quase zero entre o racional e o emocional, dando-me assim margem para poder oscilar entre um e outro, de acordo com os estímulos recebidos do exterior e aqueles que vamos construindo dentro de nós, a que lhe chamam normalmente consciência.

Dezembro é um mês triste e cinzento, não obstante o brilho e colorido das iluminações festivas que já se vêem por todas as cidades, de acordo com as suas possibilidades financeiras ou a insensibilidade quanto a despesismos que chocam muita outra gente. O efeito feérico que se obtém não chega para fazer esquecer a miséria que grassa em muitos lares, o frio da alma de muita gente solitária e a fome que os políticos tentam apagar do discernimento dos que a passam e dos outros que ainda têm consciência para a denunciar. Dezembro é um mês que seria preferível não existir. Assim como eliminaram os dias feriados que há tantos anos faziam parte da nossa identidade como nação, então seria uma medida profilática acabar com o mês de Dezembro, para que a sua mística não fosse ofendida com a realidade que nos entra pelos olhos dentro.

Dezembro é tempo de arrumar a tralha de um ano quase terminado e fazerem-se contas à vida, mas na realidade praticamente ninguém faz isso, tal é o frenesim da chamada época natalícia, com todos os ingredientes típicos da estação. Compras, muitas compras, mesmo que não haja dinheiro, inventa-se qualquer coisa, nem que seja para ser apenas uma lembrançazinha, os diminutivos, nesta época, crescem e anormalmente ficam ainda mais inhos, coitadinhos… Coitadinhos, aliás é uma das palavras preferidas dos portugueses, em cada um de nós coabita um coitadinho e junto a nós também há uma coisa dessas, que ninguém sabe verdadeiramente o que são…. Mas enfim, é natal… festas e almoços de natal, jantares de natal, mensagens de natal, telefonemas de natal, emails de natal e a nossa caixa do correio atafulhada de cartões, cartõezinhos, power points, e outras virtualidades internéticas que nos enchem de culpas se não respondemos ao Pedro, ao Maia, ao Francisco e mais à Mariazinha, que já nem sabemos quem é, mas se está na nossa lista de endereços, pode ser alguém importante e ai, não vou correr o risco de não retribuir. Mas, caramba, quem é que será esta Flor-de-Lis que me mandou beijinhos de natal, queres ver que é alguma daquelas tipas do chat, com que me entretenho à noite, de porta fechada no escritório lá de casa? ah! vocês pensavam que estas crónicas eram para o povo, todo o povo?… Claro que não! Têm um público alvo… agora já não sei se é A4 ou B5, qualquer coisa assim, mas que têm escritório em casa, têm, não fazem a contabilidade doméstica na mesa da cozinha, enquanto a patroa lava a louça do jantar…Bem, mas voltando à Flor-de-Lis, e agora… respondo ou não respondo… e se a minha mulher vê isto!?… Natal é também muita dissimulação, hipocrisia, fingimento e uma enorme dose de paciência para se chegar ao fim deste acto único duma peça montada para nos fazer ficar mais tristes, fingindo que estamos muito alegres.

Em Dezembro, se não fosse a recente entrevista do Primeiro Ministro, levaríamos com ele lá para o natal ou fim do ano, sim, porque há um calendário dividido entre o Primeiro Ministro e o Presidente da República, para nos picar os miolos com discursos pseudo qualquer coisa, com um enquadramento bonito do Palácio de S. Bento ou de Belém, que nos faz lembrar que temos ali aquelas duas figuras de reposteiro. Este ano, tivemos um extra, uma vez que o Primeiro Ministro já veio a mais uma entrevista dizer coisas novas. E que coisas novas?… Que o país está no bom caminho, indicadores e tal, exportação e mais não sei o quê, resgate, mais um… não nada disso, quanto muito um programa intercalar, até porque agora já nos habituámos a isso. E quem ainda não se habituou, que se habitue, porque vai ser o tipo de orçamento todos os anos, financiado por uns tipos que gostam muito de nos ajudar. Nós só temos que lhes fazer uma vontadinhas e pagar os juros que eles em qualquer hora decidirem, claro. Isto é como nos patrocínios puramente comerciais. Eles patrocinam e nós, qualquer dia temos só de andar na rua com aqueles cartazes pendurados ao peito e no dorso, fazendo publicidade ao que eles quiserem… também não custa nada oh! gentes!… vá lá… Sempre a dizer mal, a dizer mal…

Como vêem, aparte este último parágrafo, desta vez não fui agreste para com os políticos. Note-se que quando eu uso esta generalização, estou a pensar naqueles políticos do Bloco Central, que são aliás os que merecem usar essa designação, e isto porque são os únicos que têm estaleca e savoir-faire para governar. Os outros, da esquerda festiva, da dogmática e da dispersa, esses servem só para enfeitar a democracia. São assim uma espécie de laço engalanado do embrulho. É certo que por vezes, dão muito trabalho a desatar o nó do laço, mas enfim, se eles não existissem, não se poderia dizer que isto era uma democracia pluripartidária, porque os do arco da governação só diferem no grau de inutilidade, uns são mais inúteis que os outros e às vezes usam gravatas e fatos ligeiramente diferentes… Nuances, apenas!…

Mas então, porque é que eu não ataquei mais os políticos hoje?… Ora precisamente porque é época natalícia e se já estamos tão deprimidos, a fazer um esforço tão grande para parecermos felizes, com sorrisos coloridos a fingir que somos um país no bom caminho, cheio de indicadores por tudo e por nada, em que as bichas dos desempregados à porta dos centros de emprego, se mudaram para a porta das grandes superfícies, para comprarem perus, bacalhau, espumante e fatias douradas e brinquedos, muitos brinquedos, porque o desemprego está a desaparecer a olhos vistos, olhem só para os estaleiros de Viana, só a Martifer vai “talvez” criar mais de quatrocentos postos de trabalho… Depois, claro, do Ministro da Defesa, aquele senhor que superiormente cuida da Defesa Nacional, nos curtos espaços de tempo que as mais de vinte administrações ou empresas que gere, lhe deixa livre, ter já anunciado o despedimento dos seiscentos que ainda lá estão… Neste contexto, acham que eu iria trazer para aqui os políticos, para ensombrar ainda mais as luzes vitamínicas do natal artificial da nossa desesperança!?… Só se fossem dependurados nas iluminações de natal, a pedalar em geradores eléctricos, para baixar a conta da electricidade dos festejos… E mesmo assim, já teremos que aturar os dois discursos do protocolo, o que já não é pouco, como sacrifício…

Pois, então, como soe dizer-se, Boas Festas, Páscoa Feliz e um Carnaval cheio de Prosperidades…

Por: Ernani Balsa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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