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O OÁSIS DO NOSSO DESCONTENTAMENTO

De que falar quando não se quer falar daquilo que toda a gente fala? Daquilo que toda a gente pensa? Daquilo que toda a gente sente?

Ernani Balsa

Ernani Balsa

Um exercício quase absurdo seria imaginarmos a existência de pessoas sem a capacidade de pensar. Ou antes ainda, sem a vontade ou a intuição de pensar. O instinto do pensamento será em si uma razão justificativa do factor racional das pessoas!?… Ou será antes uma faculdade que é mais ou menos induzida por outras instâncias da vontade e da necessidade que certas pessoas desenvolvem, como resposta às suas dúvidas e a uma insustentável aversão à resignação, como forma de iludirem as suas próprias fraquezas e frustrações!?…

Olhando hoje à nossa volta é contudo pacífico podermos dizer o quanto a abstinência do pensamento grassa na nossa sociedade. E é evidente que, não querendo ser fundamentalista nesta afirmação, terei de a enquadrar numa certa forma de exercer o pensamento, porque no fundo, duma forma instintiva, puramente animal, aliada à génese do conceito do racional, o ser humano vai ainda pensando, mas trata-se duma forma de pensar básica e intuitiva, como sinal de um certo instinto de sobrevivência. Pensa-se como se respira, como se cumprem as necessidades fisiológicas, como se cumpre o sexo apenas por cumprir, sem uma componente lúdica a transbordar volúpia e erotismo, como nos locomovemos por imperiosa necessidade de cumprirmos rituais gregários ditados pelo trabalho, pela disciplina rígida da convivência social ou de formas de lazer amorfo, multiplicadas pelos milhões de seres que se imitam todos os dias.

Pensar de outra forma, dum modo inteligente e crítico, irrequieto e compulsivo, irreverente, insubmisso e permanentemente insatisfeito, é algo que hoje em dia assalta uma fatia muito diminuta da sociedade. As pessoas estão demasiado ocupadas a esforçarem-se para não pensar, a abstraírem-se do que as rodeia para além dum perímetro que começa e acaba no seu umbigo, a encaixarem-se nos projectos, que lúgubres centrais do marketing, da publicidade e do entretenimento empacotado dos media televisivos e outros, para si fabricam e divulgam das mais variadas formas. Os políticos de manga-de-alpaca e colarinho branco, vendedores de sonhos e profissionais da mentira, ajudam a institucionalizar esta praga. As pessoas verdadeiramente não pensam, apenas recebem a informação, apreciam, relativizam e decidem de acordo com o que lhes é apresentado e suportam os encargos de tudo isso como uma obrigação que lhes acalma a alma e o espírito, julgando assim contribuírem para a satisfação das suas necessidades mais prementes. Mas apenas adiam o seu verdadeiro encontro consigo próprias e desperdiçam o potencial de raciocínio e de liberdade de pensamento, que as deveria diferenciar de qualquer andróide ou ser amorfo e acrítico ainda por inventar.

Quem mais foge à liberdade do pensamento é quem mais defende a tirania do consumível e do consumado. Porquê pensar em excesso, para além do estritamente exigível e necessário, se tudo se consome e tudo já está consumado nos horizontes daquilo que alguns projectam para o nosso presente e o nosso futuro!?…

É por isso urgente agitar este marasmo do pensamento. Desobstruir as vias da criatividade e do sonho. Subverter a apatia da nossa inteligência adormecida. Criar uma central de sonhos e do pensamento. Uma confraria da discussão permanente. Fóruns, conferências, colóquios. Promover uma feira de novas ideias e uma festa global da alegria e da utilidade de pensar. Introduzir no ensino obrigatório uma disciplina do pensamento e da discussão. Apoiar a contestação como forma lúdica e erudita de exercitar o raciocínio. Em última instância, proibir as pessoas de não pensar e logo a seguir libertá-las para que amanhã seja já proibido proibir.

Basta pensar na exequibilidade dos sonhos e na força do nosso pensamento. Porque é urgente pensar.

De que falar então, quando não se quer falar daquilo que toda a gente fala? Daquilo que toda a gente pensa? Daquilo que toda a gente sente? Falar apenas por falar, sem recurso ao pensamento, torna-se assim um vazio da expressão, um deserto de nós próprios apenas pontilhado por oásis do nosso descontentamento.

Por: Ernani Balsa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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