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O PENDURICALHO

J. Antunes de Sousa

J. Antunes de Sousa

Comecemos por mais um dos raros motivos de orgulho nacional: Portugal deve ser um dos países onde mais elevada é a taxa de chaparia por centímetro quadrado de peito – peitos de alguns, está bem de ver!
Claro que “nem tudo o que reluz é ouro”, mas que mal há nisso se o que verdadeiramente importa é que reluza? Sim, que o peito luso quer-se luzidio, mesmo quando o que reluz seja só por fora a reluzir…
Que já não há muito com que enchamos o peito, que escasseiam reais motivos de orgulho, os únicos que o poderiam encher por dentro? Cobramo-lo por fora de motivos de adorno – que é o atalho mais à mão para um doce e aquietante arremedo de uma grandeza perdida.
Antigamente punha-se uma medalha ao peito do bravo bombeiro da Trafaria e até a peixeira do Bolhão recebia, garbosa, o reconhecimento da gente que lhe gabava a dedicação, aquele seu jeito único do pregão e o brio na qualidade do carapau.
Agora, talvez por estarmos em crise – é, pelo menos o que se diz por aí – tem que haver mais critério na distribuição dos penduricalhos – e também, claro, mais certeza de se não estar a cometer nenhuma injustiça: chapinhas a eito a todos os que, com beneditina diligência, se prestam ao supremo sacrifício de cessar funções em altos e espinhosos cargos do Estado. Assim, em fila indiana, não é fácil que escape alguém à terna magnanimidade presidencial – todos levam pela medida grossa! E, assim, com o peito inchado e a reluzir, é muito mais provável –é quase certo!- que se calem e se mantenham no recato da íntima celebração da sua fantástica façanha – a de ter chegado ao fim, aprumados e certinhos que nem um fuso, do desempenho maquinal da sua quase divina função. Além da ínvia e oculta intenção patriótica – a de provocar o encandeamento de quem, atónito e rendido, ouse contemplar tão flamejante metal em tão lustrosos peitos – metal cujo brilho se deve, porém, não ao mérito, mas à posição na pirâmide do Estado!
Um Director Geral, por exemplo, não importa que tenha ou não dirigido qualquer coisa, mas sim que tenha sido geral, isto é, que não tenha ido além do que geralmente se pede a quem é especialista em generalidades…”e culatras!” – critério em boa parte válido também para o Comandante Geral, este, de facto, mais especialista em culatras e em balas de pólvora seca.
E se tiver sido Presidente do Supremo? A mesma regra da vénia oficial, do público salamaleque de finados: tome lá e vá para casa descansar, que é preciso dar a vez a outro, a quem espera, seguramente, prémio igual – que o mérito mede-se pelo feitio da cadeira e, acessoriamente, pelo tamanho do rabo que nela se senta.
No dia de Portugal já não se condecora heróis, decora-se apenas a face pálida de uma pátria asténica e abúlica! As pretensas condecorações, mais do que premiar portugueses, parecem aviar funcionários – com umas honrosas excepções que apenas confirmam este zelo decorativo da nossa generosa República.
O que motiva tão comovente e indefectível outorga de metal reluzente e com nobilíssimas alusões históricas e simbólicas não é um qualquer feito relevante do agraciado, mas um único e determinante feito – o ter parado para ceder o lugar a outro, permitindo assim o escoamento das alinhadas e solícitas competências da nação, acto que traz consigo, não raro, um generalizado sentimento de alívio por se ver assim o fim de um chorrilho de asneiras.
É como na loja de antiguidades: há uma lista e o correspondente preçário – tudo à mediada do cliente! Imaginem, meus amigos, o descrédito que seria despedir um alto dignitário da estrutura do Estado sem o respectivo penduricalho. Não. O Estado não se pode dar ao luxo de, por distracção ou ligeireza, criar assim um herói – dos tais que deveriam ser realmente condecorados! A função do Estado é alinhar pela direita os seus servidores, de preferência por alturas, como na recruta!
A condecoração, que devia servir a liturgia da memória, tornou-se, por via da banalização, um ritual da mediocridade.
A condecoração já não é propriamente um verdadeiro prémio; é mais que tudo uma gorjeta, um engodo, quiçá um analgésico, talvez até um abrigo – o que dá bastante jeito em tempo de ventania!

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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