OS ABUTRES

Este episódio, apesar de ter ocorrido há já algum tempo, mantém, infelizmente, toda a sua crua actualidade.

J. Antunes de Sousa

J. Antunes de Sousa

Com efeito e, como tantas vezes acontece, – diria que praticamente a toda a hora -, o noticiário do meio-dia fornecia-me tema de vulto para corresponder à solicitação do artigo semanal: o da pouca conta em que nos temos.

Naquele tom quase proclamatório, esse que em Portugal se considera o mais apropriado para anunciar as desgraças, a jornalista fazia-se ufanamente eco de um relatório baseado creio que num inquérito junto de vinte e tal mil pessoas e que concluíra que, em Portugal, se vive à grande (uns tantos e sempre os mesmos), assim-assim (uns poucos e cada vez menos) e mal que eu sei lá (demasiados).

Concluía aquele relatório que os principais problemas a afligir os portugueses são o desemprego, a pobreza e a dependência do álcool e das drogas. Conclusão tautológica e redundante: nada nela há que não soubéssemos todos há muito.

E sabíamo-lo porque nos sabemos, desde sempre, nesta nossa congénita prontidão para a lamúria e para a auto-flagelação. Não sei se por causa da persistente conflitualidade entre as diferentes e sucessivas hordas de ocupantes do nosso território, se por um refluxo timorato sobre nós próprios, como se quiséssemos escapar ao mundo para nos refugiarmos no mito lânguido do nosso sonho, o certo é que nos tolhe um ancestral e misterioso legado, feito de sustos e desconfiança. E que nos turva e encurta o olhar da alma: vemo-nos sempre em miniatura – e tudo o que de nós venha. A pequenez é o nosso padrão auto-considerativo – realizamo-nos no clima macio das pequenas coisas.

Somos o “Zé Povinho” na caricatura de Bordalo não apenas por não nos ligarem nenhuma, mas sobretudo porque nos desligamos de tudo – e, assim, entretidos com o nosso mundo cujos limites se confundem com a esquina do nosso pátio, nos vamos alimentando do gozo tonto do nosso alheamento. Por isso o português é, no dizer de José Gil, o povo da não-inscrição.

A pequenez, contudo, não depende do decreto da fita métrica, mas da nossa resignação ao definitivo de tão irrelevante veredicto. Só somos pequenos porque gostosamente nos confirmamos nisso de o sermos.

E dizia o relatório que o povo português é egoísta – que se dispõe a dar só quando há incêndios, terramotos ou tsunamis. Mas que grande novidade! Como pode ser generoso quem se consome no medo de que o engulam? O egoísmo outra coisa não é que o outro nome da pequenez – a da alma, que é a única que o é realmente.

Quando é para dar em magote, como no arraial lá da santa terrinha, toda aminha gente corre com rostos sulcados de lágrimas e até se esmifram a ver quem dá mais; quando, porém, se trata de ajudar no silêncio obscuro de um anonimato virtuoso encolhem-se até ao limiar da pura invisibilidade. Lá está: somos do “oito ou do oitenta”, de extremos – que é onde se está mais próximo da irrealidade. E a irrealidade é o nosso clima natural – onde nada verdadeiramente acontece.

Este nosso gosto pelo pequeno tornou-nos íntimos do pouco – e com esse pouco nos contentamos.

Esta nossa pobreza vem-nos da alma que se nos fez assim tão gémea da resignação. E é por isso que nenhum plano governamental ou da sociedade civil visando erradicar a miséria pode resultar – é preciso restaurar primeiro a alma, que se nos fez mole em demasia.

Enquanto nos desfazemos em lamentos e protestos junto ao cais das colunas, habituado ao choro convulsivo e estéril das carpideiras, em vez de nos afoitarmos no sonho audaz da grandeza, definharemos atolados no “nevoeiro” da nossa misteriosa e teimosa inadvertência.

Entretanto e apesar de tudo, eis que temos aqui um problema bicudo: o da mediocridade erigida à condição de dogma e de doce fatalidade. O que, no momento actual da nossa história colectiva, é verdadeiramente trágico é que esta nossa congénita e resignada pequenez se tenha travestido de uma falsa pesporrência que nos cobre de um ridículo crepuscular: esta corja de arrivistas de última hora, que, na sua manha oportunista, se irmanam com os abutres da savana, e que têm a suprema ousadia de acreditar que nos podem convencer de que nos estão a governar – mais, a salvar! – sabendo que é pequeno este povo e que, como tal, o seu destino é amochar, malham à grande, sem dó nem piedade! A sua pusilanimidade, porém, é inversamente proporcional à pequenez a que eles querem à viva força condenar-nos. E, nisto, se esquecem que é o seu próprio destino que cavam, ao cavarem, de forma tão dedicada, a vala comum onde nos querem precipitar. Eles vivem na ilusão de que podem medrar impune e indefinidamente na justa medida em que o seu dócil povinho nasceu para se contentar com o pouco que a zelosa Providência lhe destinou.

Eles cortam a direito e a eito nas pensões daqueles que, no fundo, consideram inúteis porque sabem que já não comandam regimentos nem conduzem comboios ou camiões – já ninguém lhes liga!

Batem-lhes porque se convencem de que já não têm pio – creem ter-lho tirado já.

Minha esperança, quase certeza: erro de cálculo!

Nenhum país sobrevive sem o decisivo contributo dos mais velhos.

Até porque cada vez há em Portugal menos jovens – ora porque os não deixam nascer, ora porque os mandam embora!

A não ser que, dentro de algum tempo, alguns deles decidam regressar, já de olho bem vivo e arregalado, e se disponham a meter isto nos eixos!

NB: creio mesmo que alguns já regressaram!

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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