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As cartas têm sido usadas para soltar um grito, um soluço ou até para dissimular um silêncio

PAIS, FILHOS E CARTAS

Não sei se todos os pais merecem uma carta ou se todos os filhos se disporiam a escrever uma e divulgá-la, simplesmente porque achariam importante dar-lhe tal exposição. Nem sei mesmo se numa carta cabe tudo o que um filho pode dizer ao pai. Sei que muitas vezes as cartas têm sido usadas para soltar um grito, um soluço ou até para dissimular um silêncio que não se consegue calar dentro de nós.

No contexto actual da nossa sociedade, se é que ainda a podemos definir como tal, eu diria que é menos anormal os filhos terem de se despedir dos pais quando emigram à procura de uma vida, de um país, de um trabalho que Portugal lhes nega. E digo anormal, porque dizer mais normal poderia soar a redundância. Basta ser normal. Mas nesse caso, seria sim normal o filho, que parte, escrever ao pai a despedir-se do seu colo, da sua protecção, mas também da sua incapacidade de o ajudar a ficar. Esta dupla inversão da normalidade a que hoje assistimos, de ver o pai partir por não se lhe abrirem oportunidades de exercer a sua profissão, embora ainda com capacidades físicas e intelectuais para tal e ser o filho que fica, a despedir-se do pai numa carta plena de palavras carinhosas e de angústias disfarçadas de sinais também verdadeiros de coragem, mostra-nos bem a reviravolta que a nossa sociedade deu em poucos anos. Uma sociedade que se tornou invertida na prática dos seus valores, que fez da pobreza sucesso, que promove uma guerra surda entre gerações, entre grupos corporativos, entre civis e militares e até entre políticos que não sabem liderar sem a mão pesada e incontrolável de um autoritarismo sem condescendência para o diálogo, mas também de uma oposição que apenas se opõe ao facto do seu lugar no poder estar ocupado por outros.

Portugal é isto, e tudo o que se possa dizer, com sinais ou sem sinais de recuperação, com mais ou menos verdade e com ladainhas balofas para ludibriar os menos esclarecidos, é uma fraude. Portugal é um retrato de desarticulação total entre a realidade e uma ficção que se quer criar para iludir os observadores. Portugal é um não-país, um simulacro de desenvolvimento, um imenso território habitado pela desesperança e pelo cansaço de se constituir impotente e vencido. As vitórias são apenas palavras e as palavras só ganham força e sentido quando carregam seriedade e determinação.

Não sei se o cidadão Pedro Passos Coelho algum dia emigrará e se emigrar, fá-lo-á certamente para um novo capítulo da sua vida, que lhe foi proporcionado pelo inegável mal que durante anos causou ao seu país e ao povo de que ele se diz conterrâneo. Em todo o caso, suspeito que a sua partida, um dia qualquer, não merecerá qualquer carta dos seus filhos. Ele não merecerá nada de ninguém. Nem merecerá sequer que nos preocupemos a tecer considerações como estas que eu hoje aqui repito, porque ainda cá está e sinto na carne viva da minha vida as consequências da sua nefasta intervenção na sociedade portuguesa. Confesso que sou daqueles que um dia ainda o achei honesto e verdadeiro. Depressa me desiludi e hoje, para ser breve, conciso e contido, não acho nada dele. É uma personagem dispensável e até intrusiva demais para a normal vida de um país, seja ele qual for, porque pessoas como ele não têm país, têm apenas lugares e lugares de favor, ganhos a cumprir programas e missões de que foram encarregados para no amanhã serem recompensados da sua servil fidelidade aos que verdadeiramente controlam as vidas de milhões de pessoas, isolados e resguardados nos seus refúgios de ouro, jogando com as vidas das pessoas, como se de um jogo do monopólio se tratasse. São abjecções da sociedade e os seus lacaios, mordomos da sua insensibilidade social, da sua ganância e ambição desmedida.

As cartas escrevem-se para fazer desaguar as nossas angústias, só que as angústias que eu sinto, por mim e ainda mais pelos que sofrem ainda muito mais do que eu, não cabem em nenhuma carta, nem num testamento, esvaem-se num grito de revolta que não para e perdura para além do adeus de pais e filhos e gente comum que parte e que fica, que aguenta estóica, mas também com sofrimento, a crueldade de quem lidera um país como se nele não existissem pessoas, mas apenas números, estatísticas, sinais e ganhos e perdas. Um país analítico e daqui a pouco, paralítico, tuberculoso e a esvair-se em gangrenas e tumores de origem duvidosa. Incontroláveis. Pronto a morrer, como se diz em linguagem metafórica e eufemística, de doença prolongada…

E nessa altura, quem escreverá as cartas?… Os pais ou os filhos?… Suspeito que ninguém…

Por: Ernani Balsa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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Não sei se todos os pais merecem uma carta ou se todos os filhos se disporiam a escrever uma e divulgá-la, simplesmente porque achariam importante dar-lhe tal exposição. Nem sei mesmo se numa carta cabe tudo o que um filho pode dizer ao pai. Sei que muitas vezes as cartas têm sido usadas para soltar um grito, um soluço ou até para dissimular um silêncio que não se consegue calar dentro de nós. No contexto actual da nossa sociedade, se é que ainda a podemos definir como tal, eu diria que é menos anormal os filhos terem de se despedir…

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