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Paris – a morte em nome de um Mundo louco

Muitas vezes, não reagirmos de imediato a um forte impacto na nossa alma, deixa-nos um amargo interior que nos faz sentir confusos e culpados por não termos tido a capacidade e a frontalidade de reagir a quente à dor ou revolta que sentimos. De nos termos encolhido ou guardado no mais interior de nós, de termos retido um soluço, uma lágrima ou um clamoroso grito de revolta e indignação.

Na noite de Sexta-feira, dia 13 deste mês tristonho de Novembro, tão perto já do Natal, que me começa a encher de angústias e sentimentos incompreendidos de melancolia e culpa, de negação e de inapeláveis susceptibilidades, estava a jantar num concorrido e simpático restaurante de Campo de Ourique, com duas amigas, no meio de uma agradável conversa sobre o labiríntico relacionamento das pessoas, quando transportam e reflectem nas suas amizades todos os traumas que trazem do seu percurso de vida. Como bons amigos que somos, a conversa era serena e bem acompanhada por um vinho tinto Duriense, suave e aromático, daqueles que nos fazem sentir, naqueles momentos, as pessoas mais felizes e sortudas do mundo, apesar dos engulhos da vida que todos temos de suportar. A amizade e a partilha de um bom prato, com o sabor de um bom vinho e a disponibilidade da noite, fazem-nos sentir que estamos noutra dimensão da vida. A dimensão da sã convivência e do são amor à vida.

Campo de Ourique é um bairro como deveriam ser muitos outros bairros, embora cada um com a sua identidade. Mas este é um bairro inegavelmente simpático, amigável, acolhedor e cheio de vida, não uma vida agitada e freneticamente animada por bares ruidosos e excessivamente povoados, mas por uma rede de comércio nocturno que privilegia o convívio e a boa disposição de quem o frequenta. Come-se e bebe-se, conversa-se e argumenta-se em tons de pacífica troca de opiniões e passeia-se pela sua urbanidade quadricular, centrada à volta do frondoso Jardim da Parada e que se estende até ao seu Cemitério dos Prazeres, passe a estranha ironia deste baptismo, mas que não deixa de ser o mais belo cemitério de Lisboa.

As cidades são isto. Pessoas e vida. Trabalho e azáfama. Lazer e despreocupação. E de repente, a meio do jantar, depois do copo levado aos lábios para sorver o néctar do Douro, uma olhadela enviesada à televisão. Fico de olhos fixos no ecrã e de ouvidos atentos. Aquilo tinha acontecido. Estava ainda a acontecer, Paris sob o terror de vários atentados perpetrados por mentes alucinadas por uma causa sem causa e sem perdão. Há causas que nos atormentam e incomodam porque não as entendemos. Mas há causas que matam. Causas que nem os seus seguidores entendem, porque apenas se obrigam a executar o que alguém lhes determinou. E eles julgam que estão certos, mesmo que a causa seja errada e abominável. As notícias continuam sem interrupção e na mesa, trocamos olhares e quase não comentamos. É difícil comentar a ignomínia e o terror. O impacto de estarmos a assistir a uma mortandade quase em directo. Balbuciamos incredulidades e estupefacção. Fomos apanhado nas mesmas circunstâncias do que muitos dos que calmamente jantavam em restaurantes parisienses. Ou dos que assistiam ao concerto no Bataclan. Ou de outros, que simplesmente circulavam nas ruas naquela noite de Sexta-feira. A morte simplesmente foi ali ter com eles e nós, aqui no restaurante, resguardados, por enquanto, num paraíso chamado Lisboa…
Regressado a casa passo a noite a ver e ouvir notícias que se atropelam e buscam por novos detalhes. Mas que detalhes pode haver na morte inglória numa Sexta-feira em Paris?… E dou por mim a pensar em tudo o que possa estar a montante desta carnificina. A razão de toda esta sanha irracional e tétrica de alguém que luta por um ideal que o obriga a matar inocentes, inventando que todos eles são culpados de não serem como ele próprio. De não seguirem os seus princípios. De não se curvarem perante a suprema vontade do profeta, que eles acreditam firmemente, ser a luz que os ilumina na escuridão das suas vidas. A imensa incapacidade de entender estes desígnios, faz-nos ficar sem raciocínio claro e pronto. Tolhidos por mil e uma interrogações que não conseguimos resolver. Será o poder que os move?… A ideia megalómana da criação de um Estado Islâmico alargado a um território imenso e infiel que abranja toda a Europa?… Um sonho profético e inspirador, talvez, de dominarem meio mundo na subjugação de todos os que não professam a sua crença, obrigando-os a aceitar, obedecer e praticar a “sharia” de que tanto falam?… É inglório tentar perceber o que os move, para além da normal prática de qualquer culto religioso. Uma religião pode ser um contributo para a vida, mas a vida não deve ser um desígnio total e absoluto para justificar uma religião. Complementam-se, mas o fenómeno religioso não pode matar a própria vida.

Interrogo-me sobre o que move estes jovens que se alistam no exército de um Estado em estado de sítio. São jovens saídos de muitos dos subúrbios europeus, sem futuro e sem esperança. Querem acreditar nalguma coisa, alguma coisa que seja palpável, que seja real, que lhes transmita a simples sensação de serem úteis a algo. Não importa o quê. Num mundo que sobrevive na construção de uma sociedade cada vez mais desigual e injusta. Num mundo cada vez mais cínico e hipócrita, são presa fácil ao canto da sereia dos imãs e outros proclamadores da verdade do Corão. Uma verdade que, no entanto, lhes é apresentada duma forma revista e aumentada, malevolamente distorcida por um ódio visceral que se dirige a todos aqueles que são considerados infiéis. As promessas de um paraíso tangível, de dinheiro fácil e virgens oferecidas, dão-lhes uma oportunidade única de descarregarem os seus ódios e frustrações sobre algo ou alguém, que eles assumem ser os culpados das suas vidas sem qualquer sentido.

Por outro lado, a sensação de poderem ser os pioneiros da reconstrução de um novo Estado, um Califado erguido numa fé única e justiceira, transmite-lhes uma invulgar sensação de se assumirem como os novos cruzados, agora do outro lado da barreira, salvando e dizimando, de acordo com as exigências do profeta. Mas é claro que esta cruzada nasceu de algo e não terá sido uma revelação espontânea que surgiu a alguns iluminados. O caos em que o Médio-oriente se tem transformado com a ajuda das grandes potências ocidentais e o hipócrita conluio de Israel, tem levado às mais improváveis alianças anti-natura, que juntam interesses imperialistas e segregacionistas com projectos de libertação dissidentes de alguns regimes pouco democráticos da região. São conhecidas as ligações e explícito apoio dos Estados Unidos da América a certas facções combatentes no terreno, facções essas que recorrentemente, depois de treinadas, armadas e com autonomia suficiente, acabam por se libertar do jugo americano e passam a actuar autonomamente, numa perspectiva radical de imposição das suas concepções extremistas do Corão. Assim aconteceu com o Al Quaeda, com os Talibãs no Afeganistão e agora com os combatentes do Estado Islâmico. Todos eles seguiram este guião, foram armados e treinados pelos americanos e, muito provavelmente, também pelos israelitas, servindo-lhes na suas estratégias e jogos obscuros de baixa política, enquanto considerados como úteis. Depois, libertam-se e aí estão eles, de Corão empunhado, sem qualquer culpa do profeta, mas agindo em nome dele.

Ainda noutra vertente, e para que fique claro que estes movimentos nunca alcançariam a perigosidade que hoje se vê, o seu poderio só existe porque são armados por um abominável negócio de armas, normalmente detido e usado por grandes traficantes, muitas vezes actuando sob uma camuflagem criminosa em nome de Estados de direito que se pavoneiam na sua institucionalidade inocente, mas acabam por ser os obreiros de toda esta instabilidade. As armas não surgem do nada, são fabricadas e comercializadas por alguém. Não nascem nas árvores. Não surgem por milagre de qualquer deus ou profeta. Elas são os vestígios mais criminosos e materiais de toda uma teia de interesses políticos e económicos que não se detêm em exames de consciência ou pruridos politicamente correctos. Como se diz vulgarmente, hoje em dia, são negócios, estúpido!… E tudo se esvai na fumaça de mais uma qualquer conferência internacional, num G-20 ou numa cimeira de Bilderberg… A normalidade do mundo tem custos, chamados agora de colaterais, mas infelizmente recaem sempre sobre os mesmos…

De qualquer forma, continuarei a ir jantar a Campo de Ourique ou a qualquer outro bairro ou local, sem que me sinta amedrontado por medos que não salvam ninguém. Os medos atormentam, é certo, mas cabe-nos a nós insistirmos na normalidade da vida. No convívio. Na procura de bons momentos, porque os maus estão sempre assegurados. Existe no mundo um imenso movimento que se preocupa em assegurá-los, desde que isso lhes traga lucros e benefícios. E acreditem que são gente empenhada, bem vestida, trabalhadores incansáveis, estudiosos, laureados até, ocupam altos cargos e falam de cátedra como ninguém, são responsáveis e considerados e velam por nós todos. Para o bem e a maior parte das vezes para o mal… É a vida! Sendo que a outra alternativa é a morte, com todos os que morreram em Paris, em Beirute, nos céus do Egipto, na Palestina, no Quénia, na Nigéria ou em qualquer outro lado, em nome de um mundo louco!…

Ernani Balsa

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