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UM MURPHY EM TODOS NÓS

Daniela Simplicio

Daniela Simplicio

À frente do seu tempo, e talvez do nosso, e influenciado por J. Joyce, Samuel Beckett foi um escritor analítico, em que “Murphy”, é disso exemplo – “(…) uma obra-prima cómica sem qualquer contenção ou complexo”, por palavras de Miguel Esteves Cardoso. Um romance satírico, genialmente escrito, em que um Beckett de excessos, e apesar de tratar assuntos sérios, não deixa de nos fazer rir, rir, e mais rir. O nosso lado mais humano – sombrio, mesquinho, egoísta, etc. -, é exposto sem tabus, o que nos faz refletir acerca dos inconsistentes da nossa mente.

“De repente, junto ao seu ouvido, o telefone soltou um grito medonho. Tinha-se esquecido de o desligar.” OU  “(…) pegou no auscultador e tal era a sua agitação que o levou ao ouvido em vez de o atirar ao chão.” OU  “Um velhote delicioso. Asseado, surdo e mudo.” – ações ou palavras de Murphy. Este, era Murphy. Não tinha qualquer situação; não fazia coisa nenhuma; acreditava vir a ter um futuro muito belo; e nunca remexia em águas passadas. Gostava da escuridão e do silêncio. E encarava o amor como um “oficial de diligências”. Uma personagem tão peculiar que, estranhamente, acaba por ser a mais coerente consigo mesmo, ao longo do enredo.

Com personagens muito sui generis, Murphy, o principal visado, tão singularmente banal, é um indivíduo que tenta desesperadamente conectar o espírito e o corpo, procedendo assim a experiências masoquistas, como amarrar-se nu a uma cadeira de baloiço. “(…) Estava assim sentado porque lhe dava prazer! Em primeiro lugar, dava-lhe prazer ao corpo, acalmava-lhe o corpo. Em segundo lugar, dava-lhe prazer ao espírito, ampliava-o em espírito. Porque só depois de o corpo se acalmar é que ele podia começar a viver em espírito (…). E o tipo de vida que ele vivia em espírito dava-lhe prazer, um prazer tão grande que era quase uma ausência de dor.” De referir, que para Beckett, a dor é a prova da nossa existência – “sinto dor, logo existo”.

Trabalhar ou viver? Eis um dos dilemas de Murphy, que aliás não estava nos seus planos discuti-lo, pois este só entrava em conflitos aquando forçado por forças exteriores ao seu mundo particular. Murphy faz uma distinção entre o grande e o pequeno mundo, este último ao qual pensa pertencer, e encara os inconvenientes da vida civilizada como uma atrapalhação. “(…) Eram coisas de que não gostava nada. Retinham-no no mundo de que faziam parte e de que ele se atrevia a esperar não fazer parte.”

“(…) ora esforçando-se tanto que Murphy se sentia tentado a acreditar que ia parar, ora entrando em tal estado de ebulição que Murphy era levado a recear que estivesse prestes a explodir.” Referente ao seu coração, esta passagem é um exemplo perfeito da relação deste, com os outros. O primeiro estado, talvez prazeroso, e também mais frequente, no sentido da não-existência de sentimentos – “(…) era de uma temperamento excessivamente liberal”. O segundo, odiado, destinado a Célia (sua namorada), em que Murphy mais não podia fazer do que aceitar esses impulsos biológicos. Ou seja, Murphy era um homem como todos os outros, incapaz de resistir aos seus estímulos sexuais: “Este amor com uma função faz-me doer os tomates…” A sua estatura, de vistosa nada tinha, mas era muito desejado devido, e como afirma um dos personagens, “(…) às suas qualidades cirúrgicas”.

Este é um romance recheado de prostitutas e perversos, envoltos nas suas contradições, em que “(…) o amor correspondido é um curto-circuito.” Beckett era adepto da falha, era perfecionista na tentativa de não ser perfeito. Revolucionou, ao desafiar a linguagem. Utilizador das chamadas “asneiras”, Beckett desconstrói o banal. Com uma escrita hilariante, deixo, a título de exemplo, algumas passagens: “(…) tinha um rosto estreito e profundamente marcado por uma vida inteira de apatia crapulosa.” OU  “Estava deitado na cama, de costas, sem fazer nada, a não ser que se queira atribuir-lhe uma crispação intermitente dos dedos sobre a colcha.”

O autor coloca em causa a lógica, estabelecida e mecânica, da civilização, apontando esta roda da fortuna como desinteressante, para alguns. Existe um Murphy, em muitos de nós: “O prazer de romper, que, para Murphy, era a razão de ser dos contactos sociais.” Detemos o nosso outro mundo, o nosso eu mais recôndito. É um livro interessante, este. Leiam!

Por: Daniela Simplício

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