Home » ZZZ Autores » Nuno Gonçalves » A DEPRESSÃO DO VELHO OU A DEMÊNCIA APARENTE (II)

A DEPRESSÃO DO VELHO OU A DEMÊNCIA APARENTE (II)

(…) Continuação

Nuno Gonçalves

Nuno Gonçalves

O velho, sendo pai, mãe, tia/o ou outro parente, revestiu-se no imaginário da criança que fomos de alguém com os predicados de super herói e esquecemo-nos da sua dimensão humana. Quantas vezes não agimos ou vemos agir pessoas que reclamam, exigem, dos seus velhos capacidades e forças que é óbvio que já não possuem, sem termos a noção da violência dessa reclamação? Um familiar destes é sempre grande, omnipotente, omnisciente e cobramos duramente a frustração por não obtermos deles a satisfação das nossas exageradas expectativas.

Seja por frustração, conducente amiúde a graves desentendimentos familiares e até à institucionalização – outra deliciosa e cínica metáfora para o descarte e banimento do velho – seja por perda de autonomia, as dinâmicas contraem, gradualmente e com a força de um torno, o espaço vital do velho. Espaço vital subentendido como espaço físico, social e mental.

A acumulação de desconsiderações, de alheamentos, de perdas de poder, de reconhecimento, de autonomia e do exercício da vontade própria e do livre arbítrio, seja em casa, no lar, na residência, na casa de repouso ou na mais sinistra metáfora alternativa, conduz o velho a um processo de gradual e progressivo de motivação, de alheamento, de mutismo e de privação sensorial e social. Lentamente o velho recolhe-se para uma abstracção que o protege do sofrimento psicológico e afectivo. Implode num exílio sensorial e psicologicamente supressor.

Todos sabemos que a posse de capacidades depende da sua utilização e estimulação permanente. Como já experimentou quem mudou de contexto académico, profissional ou técnico, o vocabulário que nos surgia súbito e espontâneo num dado contexto, alguns anos ou até meses após mudarmos de ambiente, exigem esforço de memória ou acontece até não surgir de todo. Multiplique-se esta situação tendo em conta o isolamento completo de dias seguidos, em que nem mesmo os familiares estão disponíveis para partilhar o tempo, a conversa e dar atenção ou por um ambiente onde estamos rodeados de velhos alheados e que são um holofote e um megafone para a nossa condição de isolamento e de desclassificação assistidos por quem por muito que se entregue, trabalha por um salário e para quem não somos mais que o risco constante de esforço e de maçada.

A memória, que perde vida e referências, a perda de motivação por inconsequente, a inutilidade do querer por sujeição ao” seu próprio bem” e ao bem comum, a paralisia sob a forma de deslocação estereotipada e rotineira, a privação da dimensão pessoa no trato, na consideração e na relação, a relativização prepotente das manifestações do velho, a infantilização constante, o pasmo permanente supostamente laudatório com a idade do geronte sublinhando essa distância cósmica da restante sociedade ditam no velho o auto-exílio deste mundo de mortos-vivos onde, de uma forma ou de outra, sente estar numa antecâmara fúnebre à porta da qual todos esperam a decadência, o definhamento e o óbvio/óbito.

O velho vive uma espécie de prateleira metafórica até que chegue o momento de sair como produto final.

As sucessivas perdas e privações tornam a consciência e a sensibilidade dolorosas. A abstracção, a apatia e crono insensibilidade, o não-estar, não querer, não-reagir resultam numa anestesia psicoafectiva e no embotamento cognitivo que expressam uma depressão reactiva do velho passível de conduzir a perdas de faculdades e que facilmente se percebem/diagnosticam com uma qualquer senescência e, deste modo, arrumado o mundo, regressada a ordem cósmica sob a forma mágica de diagnóstico o velho pode ser referido com um olhar cúmplice empoleirado num encolher de ombros desistente e condenatório.

As perdas pessoais susceptíveis de produzir estas depressões tanto ocorrem em casa como num estabelecimento especializado. Estas depressões reactivas do velho confundem-se facilmente com uma aparente demência e nós sabemos como é difícil de descolar rótulos cómodos.

A longa experiência da desistência e da descrença torna os velhos mais fortemente apegados à situação em que se encontram, às estereotipias e idiossincrasias e não é razoável que uma mera argumentação por mais sensata e fundamentada os inspire a aderir a desafios cuja solidez e continuidade desconhecem.

A avaliação destes estados é morosa. O meio em que a pessoa está inserida gera uma certa astasia que dificulta a detecção de indícios que revelem a permanência das aptidões e o estabelecimento de pontos de contacto. Quando observamos e avaliamos o velho estamos a ser objecto de um crivo muito mais minucioso que o nosso. Um velho ganha-nos em vivência, em experiência e num elevado profissionalismo no uso do tempo. Não podemos vacilar na nossa acção nem deixar de persistir face à pobreza dos resultados.

Os tempos do velho são mais longos. Os anos passam a correr e os dias correm devagar.

Abordar o velho como aquilo que ele é e sempre foi toda a vida, como Pessoa, ir ao encontro dos seus anseios e respeitar a sua vontade como soberana são muitos dos aspectos a ter em consideração para podermos aspirar a trazer a diferença útil a esse velho, a essa Pessoa.

Reconhecer que nele a vida ainda se actualiza, apreciar os saberes e aproveitar os conhecimentos que connosco partilham, não é um favor que fazemos ao velho é,antes de mais, saber receber uma dádiva.

Esqueço-me da cultura africana, salvo erro, que refere que “Quando morre um velho, arde uma biblioteca”. A vastidão do conteúdo de uma pessoa única é incomensurável.

Os velhos são o capital de valores absolutos, de saberes, de identidade familiar, de história e de passado, de pertenças familiares e geográficas, de conhecimentos e de manhas. A cumplicidade de um velho é das experiências mais enriquecedoras que podemos recolher pelo que essa pessoa nos ensina e revela.

Há famílias que perdem o velho antes da sua morte física. Alguns já não têm saúde que permita recuperar o seu convívio mas ainda há muitos velhos, dados como perdidos, que podem regressar do seu exílio e recuperar a alegria participar na nossa vida.

Não nos iludamos. Uma visita, ainda que semanal é uma gota de água no deserto. Nem deixa marca. Frequentemente, o frenesim dos vistantes, que tentam mostrar a alegria de estar com ele, exaurem. Mais que festa, desejam companhia.

Valorizemos as pessoas que são velhas porque chegaram lá por capacidade e não porque ser velho seja uma doença. Se o fosse se calhar cá não estavam.

Tenham presente que como todas as pessoas um velho não quer estar vivo. Um Velho quer Viver.

Quando virmos um velho pensemos no que faria sentido para nós, para estarmos satisfeitos e realizados quando tivermos como nossa a mesma condição (sim, não sabemos se quando tivermos a idade dele, já seremos velhos) e, percebendo que somos a mesma pessoa falemos e atendamos esse velho como Pessoa, restaurando-lhe a identidade, a personalidade e o seu carácter único.

Um alerta para os mais novos. Hoje assistimos a uma novidade na humanidade. Pessoas com a condição física de velhos e que, nos tempos dos seus pais já teriam a idade e a condição para serem aliviados de fadiga reconhecidos como velhos, asseguram os cuidados dos seus pais. Ou seja, são velhos a assegurar outros velhos.

Auxiliem-nos, dêem-lhes apoio e suporte. Não há shot nem pândega que valha abdicar de valores e actos de que sentiremos falta um dia. Não cavem, com a indiferença, a vossa futura solidão. Além disso um verdadeiro amigo não deserta pois esperar e hoje temos mais tempo para tudo e por mais tempo.

Por: Nuno Gonçalves
“escreve sem o acordo ortográfico”

Partilhe:

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

*

*

Comment moderation is enabled. Your comment may take some time to appear.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.