A MOÇÃO

J.Antunes de Sousa

J.Antunes de Sousa

Eduardo Lourenço, respeitado hermeneuta da alma nacional, foi particularmente certeiro ao classificar de “fragilidade ôntica” aquilo que mais imediatamente parece caracterizar este nosso estranho modo de ser – esta fácil disposição para sermos tudo aquilo que realmente não somos, numa espécie de exercício erótico de auto-ocultação, um travestismo em que gostosamente parecemos enredar-nos.

E esta superficial, quase brincalhona, maneira de nos (des)ligarmos à vida e ao mundo torna-nos utentes perdulários da palavra – como se elas servissem para tudo e para nada: somos, por via disso, mais dados à tagarelice do que à reflexão. As palavras gastam-se-nos nesse uso irreflectido que delas fazemos e delas fica-nos apenas o que nelas investimos – muito pouco! Daí, se calhar, o termo-nos tornado uma gente mais de palavras do que de Palavra. Creio mesmo que poucos povos como o nosso confirmam tão sugestivamente a tese de Benveniste (1939) de que o vínculo entre o significante e o significado é arbitrário.

Exemplos entre nós desta significativa volatilidade das palavras? Desde logo, a recente rábula acerca da derrapagem semântica do vocábulo, que quase se tornou num ícone, “irrevogável,” que, vejam bem, já há até quem lhe chame “tacho”, esse prosaico utensílio de cozinha, local, por sua vez, dedicado ao amanho (tantos a amanhar-se!) dos alimentos – e há mesmo quem esteja sempre pronto a rapar o tacho!

Na política, a baixa, claro, é onde mais descarado se mostra este abuso semântico: o sentido de cada palavra não lhe vem dela nem de um lastro transcendente ou histórico que a alimente, mas do olhar míope e vesgo que cada oportunidade determina – e andar só à cata de oportunidades tem nome, este seguro – oportunismo.

Como o atesta a dramática conjuntura nacional: cada um dos actores interpreta o bem comum a partir do ângulo obtuso do seu eleitoral interesse – e só! Como oportunista e flagrantemente táctico é o móbil do anúncio – feito sintomaticamente no decurso do debate parlamentar sobre “o estado da Nação”- de uma moção de censura ao governo a apresentar pelo partido (?) ecologista “Os Verdes”.

E, também aqui, a nacional tendência para a mistificação, para o fingimento: o termo “partido” pareceria sugerir uma entidade à parte, autónoma. Mas isso seria se as palavras mantivessem entre nós o seu “peso” e o seu prestígio. Neste caso, trata-se de um partido misturado, mais, objectivamente fundido com o PCP – assim, a agressividade sugerida pela foice e pelo martelo é oportunamente mitigada pelo charme da flor do girassol. O truque comunista: meter no mesmo saco o furioso e tonitruante lutador da avenida da Liberdade e a jovem, doce e meiga, que adora o seu cão rafeiro e se entretém a fazer festas e cócegas ao seu gatinho – e eis como a gritaria e a poesia entram de mãos dadas no doce remanso destes estrénuos lutadores por um mundo melhor e a quem Vergílio Ferreira chamou os “pedreiros do futuro”. Sem dúvida, comovente!

E é por terem os comunistas a certeza de haver sempre um número grande de papalvos dispostos a deixarem-se comover que eles entram neste arranjo de bastidores e que, para os tais “Verdes”, que, de outro modo, cairiam de maduros, é um negócio da china.

Esta moção foi congeminada pela astúcia táctica dos comunistas para quem as contas são bem fáceis de fazer:

Sob a máscara do afrontamento de um governo que sabe estar formalmente arrimado a uma maioria parlamentar, e que corre até sérios riscos de sair beneficiado de mais esta peleja, o que o PCP verdadeiramente quer é entalar o PS, que, assim, se vê num sarilho, num dilema entre dois buracos: se vota a favor da moção, como imprudentemente anunciou, arrostará a indignação de todos os que lhe não toleram um jogo duplo assim – dizer estar contra um governo com o qual, ao mesmo tempo, negoceia o tal «compromisso de salvação nacional». Daí, mais um exercício fatal de semântica política, o de fazer crer aos incautos, que os há cada vez menos, que os interlocutores com funções governativas o são apenas na condição de dirigentes do PSD, condição esta que não podia encaixar pior nas pessoas de um Maduro ou de um Moedas.

Se, por qualquer golpe de rins ditado pelo desespero, optar pela abstenção, lá virá a acusação do costume – que o PS nunca foge ao seu destino de ser cúmplice «com esta política de direita». Em qualquer dos casos, em tempo de ceifa, colheita farta para as gentes da foice e do martelo – que é grande a martelada na estratégia socialista de passeio para S. Bento pela avenida aberta pelos disparates da governação.

E, assim, eis como um partido corpuscular, tirando vantagem da sua ambiguidade institucional – politicamente dependente e parlamentarmente autónomo – e aproveitando uma das prerrogativas regimentais, presta um inestimável serviço ao partido que o acolhe. Como acontece com o pássaro que, pousado no elefante, o alivia da comichão provocada pelos insectos que, de outro modo, o devorariam – os biólogos chamam a isto o fenómeno do comensalismo: é vantajoso para ambos!

E, enquanto os políticos se entretêm às moções, eis que o país real continua a ser varrido por devastadoras monções que ameaçam extingui-lo: eis o estado de autismo, esquizofrenia a que a vivência alucinada da ideologia conduz!

Lembrem-se de Nero…!

Acordem, que lá fora está um país a arder e aos gritos!

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

A MOÇÃO*
(*)” este texto foi escrito antes da discussão da moção de censura na A.R.
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