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A PONTE DA CONCILIAÇÃO

J. Antunes de Sousa

J. Antunes de Sousa

Em 1994, Eric Hobsbawm, recentemente falecido, publicava a famosa obra “A Era dos Extremos”, pretendendo com tal título e com a propriedade possível caracterizar o século XX: foi, de facto, um século que, na sua primeira metade, após a trágica explosão de patológicas antinomias, explosão essa que fez dele «o século mais violento da história humana», no dizer do Nobel de Literatura de 1983, William Golding, se amparou, na segunda metade, no equilíbrio pelo terror da «mútua destruição» que, no plano geopolítico, implicou, por sua vez, a recíproca diabolização dos extremos, dos blocos em conflito e, entretanto, consolidados – os EUA e a URSS…e até à implosão desta. Sim, porque ainda houve esse sanguinolento sarilho dos Balcãs, retalhados por crónicos e ancestrais antagonismos, para não falar dos extremismos do Médio e Extremo Oriente.

Com a pulverização estratégica gerada pelo efeito de vácuo do desmembramento soviético e com a consequente emergência de um poder dominante, monopolar, os EUA, a bipolaridade político-militar extremada, até aí vigente, foi dando lugar a um tipo de centro, vagamente político, mas sobretudo económico-financeiro, concitando à sua volta um centrismo maioritário de tipo sociológico, um centro que, qual buraco negro, tudo suga e desvitaliza em seu redor. Deu-se-lhe o insuspeito e sibilino nome de globalização – e, de facto, o que faz, indiferente aos gemidos das pessoas que, em farrapos, vão ficando pelas bermas, é concentrar tudo nos bolsos de uns tantos, esses indecorosos novos donos do mundo.

A este novo centro, cheio de coisa nenhuma a não ser da incomensurável avidez predadora de um clube esotérico de iniciados, que narcisicamente se afogam no fátuo prazer de ter e mandar, a este centro onde foi erigido o altar ao novo deus, o dinheiro, designou-o Gilles Lipovetsky «A Era do Vazio» – do individualismo, do narcisismo, do hedonismo, do consumismo.

Há dias, no Brasil, o Papa Francisco, em notável entrevista concedida ao jornalista Gerson Camarotti, declarava que «vivemos num tempo caracterizado pela feroz idolatria do dinheiro» e que a política mundial «está impregnada do protagonismo do dinheiro». Mais: que a partir do ubíquo critério do dinheiro que se forjam as novas pertenças sociais. E, deste modo, tudo se concentra no centro: «as pontas são pouco atendidas…são descartadas»: os idosos porque já não produzem e os jovens porque ainda não produzem, só gastam e ainda com o peso que representa a sua formação – uma maçada!

E prossegue o Papa: «para sustentar este sistema mundial descartam-se os idosos e os jovens – e, descartados os dois extremos, este mundo cai!»

Sim, porque nenhum povo sobrevive sem memória, sem o lastro da tradição, isto é, sem a transmissão da sabedoria do vivido à disponibilidade existencial dos jovens para o tudo a viver!

É como conduzir um carro: se só olhar para afrente garanto-lhe que não vai longe. Se olhar só para trás, pelo retrovisor, mais vale estar quieto. Se olhar só para o painel de comando e para o volante tenha uma certeza: estampanço pela certa na primeira curva.

Como diz Charles Journet, «não é sofrer que é importante, o importante é ter sofrido», e os nossos idosos transportam na alma as pegadas de uma experiência vivida, e no rosto as rugas certificadoras do prestígio inspirador do antecedente – daí o fascínio da história. Se os mais velhos são o retrovisor da pátria, os jovens, por seu turno, são o motor e o acelerador de um futuro que ela reclama. Se a estes se pede a coragem da iniciativa e do rasgo, daqueles reclama-se o testemunho da cautela e da sensatez.

O mundo não avançará na senda da verdadeira humanização se persistir na condução narcísica do seu destino: perder-se assim na ébria contemplação do veículo alienante em que embarcou – é preciso ir olhando pelo retrovisor e olhar bem para a frente – eis a chave do futuro!

Só a conciliação dos extremos pacificará este nosso mundo extremado: a «coincidência dos opostos», no dizer de Nicolau de Cusa. Só atando as pontas, a de uma vida que se viveu e a de uma vida a viver, só assim, a vida que se vive será uma vida que valha a pena ser vivida.

Urge que nos libertemos deste pântano centrista da mediocridade (médium+cratos): o poder das meias-tintas!

Só substituindo o centro centrífugo e alienante do egoísmo e da aparência pelo centro centrípeto da solidariedade e da autenticidade, este nosso mundo se tornará a casa de todos. E todos temos direito a isso – ter casa!

Panorama de fim: jovens, aos magotes, ululantes e de olhar esvaziado, a flanar por aí sem rumo, casais que, heroicamente, se empenham em contribuir para o futuro da viabilidade biológica da raça a serem ignominiosamente ignorados quando não claramente penalizados pela usura voraz de um Estado publicano, e idosos, às carradas, depositados nesses armazéns do esquecimento, que é o que são muitos dos lares que por aí há, entalados em prédios anónimos – eis o cartão de-visita desta nossa sociedade falida.

A guerra-fria, como comecei por recordar, acabou, mas não o poder de fogo nuclear; e este desprezo pelas pontas da nossa sociedade é bem a moderna e insidiosa bomba de neutrões: assim, como quem não quer a coisa, vai dizimando os membros da locomoção colectiva em direcção do futuro até liquidar o que de mais sagrado temos – a vida!

PS. Peço aos estimados leitores que me perdoem a abundância de citações, mas, num tema tão crucial como este, é avisado estarmos em boa companhia.

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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One comment

  1. Realmente esta guerra já não é fria.. é gélida, agreste e cruel!… Os novos senhores do mundo, depois de terem conquistado todo o espaço deixado em aberto pelo colapso soviético, depressa se apoderaram da força de trabalho de todos, deitando fora o que não interessa, a serenidade e sapiência dos velhos e os sonhos e impaciência da juventude… Tudo o que não luz, como o dinheiro, nas suas mais diversas formas, é um engulho na sua avidez de fortuna e razão para o ataque mais violento… A vida é um bem de consumo caro, negociável e cotado em bolsa de interesses especulativos e não mais um direito de todos…

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