Enquanto dedilho estas letras, lavra, impetuoso, um incêndio de ódio que ameaça varrer a Ucrânia, o 44º país em extensão territorial e o 2º da Europa, logo a seguir à Rússia Europeia – um país, além do mais, com uma riquíssima história milenar e que, depois de ter sido co-fundador da URSS, em 1922, dela se veio a separar em 24 de Agosto de 1991, tornando-se assim formalmente independente.
Uma vez, porém, entregue a si próprio, eis que se soltaram do seu seio as forças autofágicas da corrupção que, com obscena avidez, têm vindo a sugar os colossais lucros provenientes sobretudo dos seus recursos mais procurados: gás natural e petróleo – e a que se juntou, a ubíqua gula predadora das grandes potências.
É dos manuais da Psicologia Social que o valor de um grupo humano se mede pelo grau de atractibilidade que suscita: todos desejam o que percepcionam como valioso e compensador. É o clássico ditado popular dos «sete cães a um osso» – só pode ser saboroso um tal osso!
A verdade é que ninguém se mete numa briga para ser aceite e acolhido num clube que se dedique à cultura da minhoca!
Mas um país onde, de vez em quando, acontecem fenómenos como o que ocorreu há uns tempos na cidade de Borislav, quando, num quintal de uma casa, jorrou uma “fonte” de petróleo e as pessoas o recolhiam à superfície com baldes, um país tão ostensivamente pródigo em recurso tão disputado só um destino pode ter como certo: ser alvo preferencial da cobiça internacional.
Algo sintomaticamente parecido acontece em Moçambique: enquanto aquele país-irmão se manteve solidamente instalado na cauda do mundo como um dos países mais pobres, foi relativamente estável e fácil o entendimento, que era pouco o que havia para repartir. Mas, agora que o bolo medrou descomunalmente, essa repartição tornou-se bem mais problemática e surgiram, pressurosos, outros convivas à volta da mesa – de dentro e de fora!
Mas voltemos à Ucrânia para reconhecermos um problema químico grave: petróleo com gás dá incêndio – não admira, pois, que o país esteja literalmente a arder!
Só que, como acontece com a maioria dos nossos incêndios de Verão, também este foi ateado por mão criminosa – foi fogo-posto!
Uma diferença, contudo: enquanto por cá, num país a fazer de conta, o fogo é quase sempre ateado por pirómanos, por gente que se baba e excita alarvemente só de ver as chamas alterosas na televisão, neste terrível incêndio ucraniano, o fogo foi ateado por interesse. Com a trágica hipocrisia do costume: os incendiários de ontem fazem-se passar pelos solícitos bombeiros de hoje – com uma peculiaridade: deixam primeiro que o fogo alastre o suficiente para ficar fora de controlo interno, pois é preciso que a intervenção que se procura pareça ser reclamada por quem está em risco de ser devorado pelas chamas.
Entendamo-nos: a Ucrânia é um país certamente estimável, mas paradoxal. Muito quiçá em resultado da sua ambiguidade geográfica de que resulta um perfil geopolítico bastante peculiar, este país, dicotómico e cindido ente o apelo eslavo e o apelo europeísta, dividiu-se à pedrada e a tiro para, numa corrida sanguinolenta e “a todo o gás”, ver qual das duas partes se precipita primeiro nos braços generosos do respectivo protector.
Bem vistas as coisas, eis a tragédia da Praça da (In) dependência de Kiev: duas facções lutando encarniçadamente pela respectiva dependência – e ambas com igual fervor em busca da tão almejada canga: uma, de dolorosa memória, mas que talvez Freud possa ajudar a explicar, vasculhando as insondáveis tortuosidades da mente humana, enquanto a outra tem, ao menos, a atenuante do engodo da novidade.
E olhando para o fascínio mortal dos ucranianos por uma tutela que os proteja e ampare no seu medo de agarrar nas próprias mãos o seu destino, dou comigo a pensar no beco a que nos conduziu a mania, bem portuguesa, de querermos, à viva força, emparceirar com os ricos, de vestir fraque, apesar de falidos.
Também nós, em Portugal, estamos entalados, dócil e docemente entalados, entre a canga e a miséria – uma canga que nos submete e a fatalidade de uma miséria que nos asfixia: onde, pois, a nossa Praça da Independência? Onde?
Em 1755, isto resolveu-se com um terramoto. Quem sabe se não vem por aí outro?!
Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”