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Acto de contrição

Estamos em vésperas de uma data que deveria ser de celebração. Uma memória que seria bom recordar, um acontecimento que não deveria ser necessário repetir. No entanto, tudo nos confunde e não sabemos se é hora de celebração, se é altura para esquecer ou há necessidade e oportunidade para voltar a criar condições para que tudo seja refeito. Não conseguiram fazer murchar os cravos de Abril, mas estragaram-nos a festa, pá!…

Tudo o que deu origem àquele desabrochar de esperanças, logo feitas pétalas de sonhos imensos e ramos de projectos e realidades novas, volta a assolar-nos por entre a frustração de um trabalho inacabado e de um futuro incerto. Vivemos numa liberdade de mostruário, de expositor em sala de museu, com entradas pagas e acesso controlado. Ela, a liberdade, está lá, mas não se lhe pode tocar e como qualquer peça de museu, está vigiada, não com medo de qualquer assalto, mas com o paradoxal receio de que venha a ser libertada. A liberdade não pode viver enclausurada, mesmo que seja em salões nobres, apenas a ser observada á distância pelo povo que lhe deu corpo e a fez medrar como sua bandeira. Quem não tem meios para usar essa mesma liberdade não pode ser considerado livre e a Democracia não pode ser comparada a qualquer sala de museu onde apenas os que têm capacidade financeira desafogada podem frequentar e usufruir.

Seria fastidioso enumerar aqui todos os que têm culpa de toda esta farsa, de todo este enredo, em alguns aspectos, minuciosamente escrito ou simplesmente improvisado ao sabor de alguma ingenuidade e condescendência. Convém mesmo que não nos recusemos a aceitar e assumir as nossas próprias culpas, as de cada um de nós, seja por ínvios caminhos de pontuais alianças e conluios com este ou aquele descaminho que os acontecimentos trilharam, seja por uma excessiva confiança em promessas e manobras encantatórias a que não souberam resistir, mas também por pura crença em políticas e ideologias claramente desaconselháveis, seja mesmo por simples omissão do papel cívico de cada um, todos nós não nos podemos eximir a um sincero acto de contrição e de uma profunda reflexão sobre o estado de gravosa desarticulação a que chegámos como Estado e como Nação.

Não foi isto que todos e cada um de nós sonhámos ou mesmo projectámos nos tempos que se seguiram ao momento ébrio da revolução. Mesmo depois de tudo assentar e do processo democrático entrar no seu trilho, dito de normalidade, deveríamos ter tomado precauções e não nos termos desinteressado pelo curso da nossa própria vida, que é também o curso da política e das responsabilidades cívicas de todo um povo. Abandonámos uma jovem Democracia aos desvarios duma classe político-partidária que, a pouco e pouco, se foi enleando cada vez mais em interesses sectoriais da sua própria vida interna, muito mais do que nos reais interesses do país e dos Portugueses em geral. É uma constatação quase consensual que as juventudes partidárias foram um tremendo erro. Uma coisa é incutir na juventude princípios e valores cívicos, outra coisa é afectar essa cultura cívica de paradigmas exclusivamente facciosos de um partidarismo de teor exclusivo para com todo os outros que não comunguem dos mesmo valores. Tal como a religião deve ser uma escolha adulta, também os caminhos que cada jovem quiser desempenhar na sociedade, sob um ponto de vista cívico e político, deve ser uma escolha e uma descoberta própria e não afunilada por dogmas partidários. Se a tudo isto somarmos uma difusa teia de promessas e carreirismo político, então facilmente desembocaremos na putrefacta classe política que nos tem dirigido.

O nosso desinteresse pela verdadeira política, o nosso desleixo perante os mais variados e abusivos atentados a uma Democracia ainda débil e titubeante, a nossa indiferença pela responsabilidade cívica de cada um de nós, permitiu que governos sucessivos se desviassem dum virtuosismo que é difícil de conseguir, mas é criminoso nem sequer tentar, só porque outros interesses lhes acenam com proventos e carreiras muito mais atractivas, tendo para tanto apenas de pôr o poder ao serviço personalizado desses agentes da sedução corruptora em vez de ao serviço do Povo e da Democracia. Depois, quando chega a borrasca, basta acusar os incautos e desatentos de que foram eles que não souberam soprar para outros horizontes, as nuvens negras, foram eles que carregaram os céus de violentas chuvas e que gastaram o sol acima das suas possibilidades, provocando esta enorme treva em que hoje vamos sobrevivendo. E agora, apenas os que têm meios de rasgar os céus com a força e a influência dos seus poderzinhos, conseguem prosseguir a sua rota de sucesso por entre as nesgas de sol comprado a preço de ouro, com os sacrifícios de todos nós, que para isso contribuímos duplamente, ignorando antes e pagando agora com o empobrecimento ditado pelos deuses indecifráveis da crise e dos mercados que tudo podem.

É com certeza penoso arcarmos com responsabilidades por tudo o que hoje nos acontece. É injusto até, talvez, porque não demos conta de como facilitámos a vida aos que hoje em dia, do alto dos seus pedestais de barro, nos acusam e nos culpam de tudo. Mas é bom que, sem nos sentirmos detestáveis por termos errado ou confiado demais nos homens que permitimos terem tomado conta dos nossos destinos, reflictamos sobre o certo e o errado e sobre a bondade, quando ela nos é oferecida pelo preço de nada. O nosso futuro tem um preço que é o preço do nosso esforço em não deixarmos mais cravos murcharem em Abril ou em todos os outros Abris de cada dia das nossas vidas. É imperioso que saibamos usar todas as armas da Democracia, que não se esgotam no voto, mas que devem ser reinventadas todos os dias. O interesse pela coisa pública, o respeito pelo que nos pertence, a permanente vigilância sobre quem nos governa, a disponibilidade para contribuirmos com o nosso saber e o nosso esforço para o bem comum, sem disso esperarmos especiais benesses, mas também o sabermos usar todos os instrumento à nossa disposição para erguermos a nossa voz e não termos timidez de gritar, para dentro ou para fora, que não estamos á venda nem somos dívida colocada em mercados de muito duvidável honestidade, tudo isto são ensinamentos que devemos colher para não errarmos de novo no futuro que já pouco nos pertence, mas que os nossos filhos hão-de apreciar.

A maior dívida que temos é para connosco próprios, para com os que já trabalharam uma vida inteira e agora merecem repouso e respeito, para com os que actualmente procuram meios de subsistência e só encontram desemprego e para as gerações vindouras que não têm culpa dos erros de quem nos levou a esta calamidade. As dívidas são números, nós somos vida. As dívidas são sempre culpa de duas partes, de quem as contraiu, por ingenuidade ou desespero, mas muito mais de quem as facilitou com dolo e olhar guloso sobre os dividendos agiotas que não hesitou impor. As dívidas são negócios, as vidas de um povo e a preservação de um país são elementos cruciais à manutenção de uma sociedade, à coexistência do mundo e os negócios resolvem-se civilizadamente e nunca por asfixia dos mais fracos.

Por: Ernâni Balsa
“escreve sem acordo ortográfico”

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