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AUTÓPSIA DE UMA CRISE

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J.Antunes de Sousa

Ela está na boca de toda a gente – e a boca não é, como pensam alguns, a porta de entrada de tudo o que nos chega à cabeça, mas, antes, a porta de saída de tudo o que nela temos: escapa-se-nos pela boca o que nos aperta os miolos.

A crise, que já todos nos entendemos acerca da personagem, tem origem na palavra grega krisis que, por sua vez, deriva do verbo krino, o mesmo que origina a palavra crítica. E que significa esse verbo supostamente de tão má reputação? Isto apenas: separar. A crítica é o acto de separar para melhor compreender, enquanto a crise é o acto de sofrer uma qualquer separação.

Ora, sabemos bem quão dolorosa é a separação – qualquer que ela seja. Contudo, o filho só cresce na medida em que se vai separando dos pais – a crise é, por isso, dor, sem dúvida, mas também privilegiada oportunidade. Quem é que não cresce? Precisamente quem fica agarrado à tal dor que dá crescer. E porque é que se agarra? Por medo – o medo da dor que dá ter de crescer, precisamente.

Estamos, assim, perante o ciclo destruidor do medo – e que representa o mecanismo mental de propagação de qualquer crise. Pergunto: algum dos meus estimados leitores conhece algum caminho mais rápido e eficaz para atrair uma coisa do que temê-la? Sinceramente, não há, até pela circunstância de todo o nosso sistema mental e emocional ter sido modelado pelo medo e estarmos muito mais calhados nisso que no seu contrário. Deixem-me ilustrar isto com um facto histórico e social bem pitoresco, saborosamente retratado por Júlio Dantas no seu famoso livro O amor em Portugal no século XVlll. “ A grande razão dos desastres conjugais na sociedade lisboeta de então está muito na fragilidade das mulheres; mas está, mais ainda, no ciúme dos maridos. No ciúme? Mas o ciúme não é um efeito? Não. Foi uma causa.” (pp. 216-217). Ciúme que é, como se sabe, uma variante do medo.

O mesmo nesta crise que todos temem que se converta em crise mundial de consequências imprevisíveis. E, já agora, esta elucidativa curiosidade: o barril de petróleo que parecia, há uns tempos, não parar de subir, desatou a descer como ninguém imaginaria quando a Senhora Lagarde, Directora Executiva do FMI, acenou, em dado momento, com a perspectiva sombria de uma recessão mundial. Razão, pois? O temor de que esta crise descambe e dê em recessão mundial – e, com as economias estagnadas, o petróleo só serve para iluminar o cemitério. Sempre o medo, mesmo na descida do que parecia não querer parar de subir.

Que houve uma causa concreta e bem identificada para a eclosão deste medo difuso que parece estar a tomar conta do mundo? Que todos reconhecem que foi a libertinagem financeira, a concessão descontrolada de crédito dos Bancos norte-americanos que desencadeou este problema? E que a crise até tem nome e tudo – Wall Street? Sem dúvida.

É como o vírus da gripe – aparece num dado sítio, mas toda a gente começa logo a preparar-se para, docilmente, o receber em toda a parte. Esta crise apareceu, de facto, em Wall Street, mas, por todo o lado, sobretudo na Europa, onde, de súbito, rebentou o endémico e, até ali, silencioso abcesso da dívida soberana, as pessoas correram espavoridas e em pânico, a tentar travá-la – ela existe, pois, não já lá, onde, num primeiro momento, se manifestou, mas na cabeça de toda a gente. E é aí, exactamente aí, que ela provoca os seus estragos mais devastadores. Querem a prova? Porque é que acham que há sempre uns maduros que enriquecem com as crises? Porque na sua cabeça não há crise coisa nenhuma – o que há é oportunidades que importa aproveitar.

Em suma, nos EUA, eclodiu uma certa causa da crise, sem dúvida, mas a grande causa, e não o efeito, como para aí se diz, está no medo que nos aprisiona a alma e nos entope a imaginação. É sempre assim: quem está com medo paralisa, quem está com confiança cria e produz.

Aceitando que há crise – não digo que não, o que digo é que ela é, pela sua própria natureza criativa, também excitante oportunidade para o oposto do que ela parece exclusivamente exibir – ela é crise de quê?

Em coro ruidoso e revanchista, uma certa esquerda radical proclama triunfante: do capitalismo. Com uma subtileza semântica: ao atacarem o capitalismo, insurgem-se, com indisfarçável ressentimento, contra o próprio capital – que o capital é a causa de todos os males, como na Idade Média o fora a mulher, que se encantara do silvo insinuante e tentador da serpente. Mas como concretizariam eles o seu projecto político de igualdade social se não houvesse capital para distribuir? Apesar do carácter lapalissiano da objecção, a verdade é que há um difuso e obnubilante ódio ao capital e a quem o possui – só que ter ódio ao dinheiro significa uma resignação fatalista à falta dele: o ressentimento contra a prosperidade é a verdadeira causa da pobreza de um povo. Ela será, e é, de facto, crise do ismo que lhe acrescentaram – este é o sufixo de todos os excessos, de todos os dogmas, de todos os fundamentalismos, sem dúvida.

Esta é uma crise que denuncia não o capital, mas o desequilíbrio na sua utilização. Ela veio condenar a tese dos que criam poder conquistar o céu enviando a maioria para o inferno. E nem foi bem o capitalismo, se utilizarmos criteriosamente o termo, que foi posto em causa, mas o devaneio humano de um sistema apoiado no absoluto da sua própria operatória, sem rei nem roque, sem a medida aristotélica do «justo meio»; um sistema louco em que todos usavam o dinheiro dos outros – assim tinha que chegar o momento em que ninguém tivesse dinheiro de ninguém, nem o seu, por insolvência do banco donde todo esse dinheiro saíra:”Modus omnibus rebus optimum est habitu” (“em tudo nada melhor que o hábito da moderação”) – diziam avisadamente os latinos.

E forte reprimenda também para os que proclamam que bom é ganhar dinheiro com o dinheiro dos outros e à custa deles – é preciso que um novo conceito de capitalismo em que todos saiam a ganhar se possa impor, porque só no equilíbrio há verdadeira vida e sólida prosperidade.

Em rigor, esta não é uma crise do capitalismo em absoluto, mas sim uma crise do desequilíbrio – absolutamente!

Um aviso final: a natureza não tolera que a forcem – e, por norma, o regresso ao equilíbrio quebrado não se faz sem sofrimento. Não, não é pessimismo, é realismo.

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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