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BALANÇO POSITIVO

J.Antunes de Sousa

Portugal é varrido de alto a baixo por um vendaval de luto que a todos sufoca numa raiva surda e impotente.

Corre um rio de lágrimas nos corações de Portugal. Alguém que lhe trave o ímpeto, alguém que nos diga e mostre como diminuir-lhe o caudal. Nada. Ninguém. Sobra apenas a estridência de um silêncio de pedra que a todos oprime e esmaga.

Bem se tenta, numa certa liturgia do exorcismo, afugentar o pesadelo, disfarçar o monstro. Como? Através de uma não menor monstruosidade – a daqueles macabros balanços comparativos da sinistralidade nas nossas estradas: «é positivo o balanço que fazemos, porque este ano houve menos duas vítimas mortais que em igual período do ano passado». Mesmo que, de entre os feridos graves, tenham alguns, umas horas depois, sido transferidos dos cuidados intensivos directamente para a morgue. É que estes já não entram na estatística. E bem sabemos que é ela, «essa deusa frígida», que, mesmo assim, nos alivia a bílis e nos desaperta os calos – e a todos nos tranquiliza a consciência, que é o que mais importa.

Morreram menos nas estradas e, de entre os que cá ficaram para isso verificar, estamos nós – e nisso nos reconfortamos, na ilusão de uma imortalidade assim privatizada. Pouco importa os que morreram e a dor daqueles a quem eles morreram ao lado deste triunfal indicador de eficácia – sempre foram dois ou três a menos a morrer este Natal. Para esta gente a morte não é mais do que mais um a menos!

Mas que se passa, afinal, nas estradas de Portugal?

Nada que não se passe também nas dos outros países, é certo. Só que no nosso país isto é de mais. Vejamos.

Há um certo recato no acto de morrer – que é também por vontade que se morre. Até a bicharada vai morrer longe. Não longe-longe necessariamente, mas fora dos olhares da gente. O gato, o cão, o coelho…eles aparecem mortos, sem que o dono saiba bem como ou porquê.

Do mesmo modo as pessoas. Quase sempre escolhem para morrer a altura em que está vazio o quarto ou quando o familiar aproveitou para engolir um bucha ou estender os ossos para descansar um pouco. É por todo o lado que se ouve a notícia: «foram dar com ele morto». Como se houvesse até uma certa vergonha em se ser apanhado em flagrante nesse supremo ápice transgressivo da morte.

Então porquê este desaforo de vir morrer para a rua, com estrondo e espectáculo? Que doideira é esta, meu Deus, de andar por aí embebedados no estranho jogo de passar tangentes ao fim? Claro que só pode ser por, no fundo, se procurar um fim que absolutamente supere o fim que, numa morte provável, assim se desafia. Como aqueles jovens que, há uns anos, naquela desvairada disputa com o comboio, rebentaram a cancela e acabaram trinchados ao longo da linha-férrea, ali em Santos.

Só uma fome incontida e mal gerida de Absoluto pode explicar a pressa de chegar a sítio nenhum, pois que, uma vez chegados, o tédio de apenas ter chegado empurra-nos para outro sítio onde possamos experimentar o prazer, sempre adiado, de ter finalmente chegado.

A paranóia de procurar fora algo que nos encha quando é no remanso do nosso íntimo que mora a razão e o modo de nos preenchermos, essa paranóia extroversiva é que dá cabo de nós. Só que nas estradas e, com estas máquinas modernas, é tudo mais rápido e eficaz.

Na procura nevrótica de um mais que a cada um de nós sacie e complete, andamos por aí numa correria maluca, sem outro motivo aparente que não seja o de cada um andar mais depressa que o outro – passei-o e, nessa minha vantagem ilusória, a ilusão aplacante de ter mostrado ao outro, através de um complexo de bielas e pistons, como sou mais poderoso e mais gente. É claro que não foi nada ao outro, mas a mim próprio, que quis mostrar – que o outro, que nunca saberei ao certo quem é, o que de mim ao certo sabe é apenas que sou louco e inconsciente.
A exterioridade da vida moderna como nota marcante do vazio que nos engasga a que se alia a busca ansiosa e dispersiva dum valor que nos pacifique a alma – e aí estão os reais protagonistas desta insidiosa guerra das estradas. Se desatamos à chapada por um euro, aos tiros por um palmo de terra ou até por um olhar furtivo, admira lá que, atirados pela potência dessas máquinas que são os carros de topo de gama, e não só, aproveitemos para nos engalfinharmos uns nos outros?!

É guerra e suicídio o que há nas estradas. Guerra como extensão alucinada das nossas guerrinhas quotidianas. Suicídio como busca ínvia e sempre desesperada de uma outra vida, bem para lá desta triste vida que se tem – como aqueles que ultrapassaram a fila de carros junto à passagem de nível para se irem enfiar debaixo do comboio.

A incapacidade de se estar inteiro na serena actualidade de si empurra tanta gente para a vertigem que, mais que colocar um guarda em cada curva, melhor fora talvez introduzir cursos de yoga, meditação transcendental e outras técnicas de auto-empoderamento e de consciencialização nas escolas. A ver se nos púnhamos todos de acordo sobre esta coisa tão básica e necessária: acabar com as agressões nas estradas. Todos, incluindo o médico, o farmacêutico, o protésico e o cangalheiro – que não se lhes acaba, seguramente, o ganha-pão.

É por tudo isto que me toca sempre muito aquele ar abatido (se for dos conscienciosos) do oficial da Brigada a proclamar, uma vez mais, no final da operação “Fim de Ano”, a dimensão da tragédia, apesar da mobilização de todo o dispositivo da Guarda Nacional Republicana.

São quase todos meus amigos os mais altos responsáveis da Guarda. E eles sabem quanto lhes aprecio o esforço, o profissionalismo, a competência. Mas, é com sincera tristeza que o digo, de muito pouco vale tudo isso, sendo certo que é tudo o que isso vale. Porque os desastres vão continuar, apesar de tudo. Como continuarão em França, apesar das drásticas medidas de repressão há tempos anunciadas com pompa e circunstância em Paris. É que não é bem uma questão de civismo, de jeito ou sequer de reflexos – que é também. É, mais que tudo, uma questão de alma – que a temos bem doente. E não se pense que é de algum decreto, ou de silenciosas alterações ao Código das Estradas que lhe poderá vir a cura. Não é de fora para dentro que se muda a gente, mas é a partir de dentro de cada um que a gente pode mudar.

Afinal, sempre nos foi mais agradável tentar remediar (acudir em alvoroço e compaixão) do que prevenir – que, assim, é por dentro que se nos exige que mudemos todos. E é muito mais fácil levar um ramo de flores a uma enfermaria do hospital ou mudar de gravata no dia do enterro.

E é até por isso que continuará a haver os tais balanços positivos só porque se registaram menos um ou dois mortos que no ano passado.

Desculpem, mas apetece-me gritar: um balanço assim é de morte! Que só mais morta que viva pode estar uma sociedade que com tamanho embuste se aquieta.

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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