Tem sido notória a vaga de protestos, manifestações e outros movimentos de carácter revolucionário que nos últimos anos têm vindo a acontecer nos mais diversos países do mundo. Movimentos que surgem quase do nada, mas que assentam numa sensação progressiva de mau estar, de tiques autoritários ou mesmo ditatoriais, de exercício de vários tipos de poder que não respeitam os direitos mais fundamentais das populações ou então de desvios duma linha democrática, que progressivamente se vai afastando daquilo que os cidadão entendem ser o caminho certo e desejável, desvios esses que genericamente se consubstanciam numa crescente prática de corrupção aos mais variados níveis, num despesismo, ora bacoco ora arrogante, sem qualquer respeito pelos cidadãos, desviando capacidades financeiras necessárias ao desenvolvimento da sociedade, para obras faraónicas de duvidosa utilidade ou tendo apenas como objectivo favorecer agentes ou grupos económicos próximos de poderes corruptos, numa obscena promiscuidade entre poder e especulação económica e financeira.
Talvez, de entre esta vaga de rebeliões populares, as mais surpreendentes tenham sido aquelas a que se convencionou chamar de Primavera Árabe, porque aí, a todas as causas acima mencionadas, se juntou uma questão religiosa, que pôs em causa os estados do norte de África e mesmo do Médio Oriente. Sem querer analisar em profundidade cada uma delas, é fácil reconhecer que as populações desses países, como por exemplo, a Tunísia, o Egipto, a Argélia, o Bahrein, o Djibuti, a Jordânia, o Omã e o Iémen, para citar os principais e com menor visibilidade, o Kuwait, o Líbano, a Mauritânia, Marrocos, a Arábia Saudita, o Sudão e o Saara Ocidental, encontraram nas mais diversas contradições entre um legítimo desejo de maior democracia e a asfixia religiosa, castradora das mais básicas ansiedades de liberdade individual dos seus povos, um mote para finalmente se rebelarem contra o “statuos quo” de sociedades retrógradas e punitivas.
Mais recentemente, a situação ainda em evolução na Turquia, onde o simples pretexto de uma revolta popular contra a destruição de uma das principais zonas verdes de Istambul, para a construção de um centro comercial, serviu de rastilho para uma generalização dos protestos, com significativas manifestações de milhares de pessoas, não só em Istambul como em Ankara e noutras cidades do país, veio mostrar-nos como qualquer pequeno conflito popular, pode crescer inesperadamente e tornar-se numa verdadeira rebelião que vai agregando muitos outros motivos de protesto e que, na maior parte dos casos, confluem sempre num mau estar latente da sociedade, facilmente inflamável pelo descontentamento e falta de perspectivas da população mais jovem, mas que no final acaba por arrastar enormes multidões de todas as idades, género e condições sociais e mesmo de diferentes credos. A Turquia, na sua posição de fronteira entre uma Europa que progressivamente se vai desagregando no seu sonho comunitário e um oriente em permanente ebulição, assume assim uma relevância especial, pelo que não nos devemos alhear do que lá se passa e antes pelo contrário, devemos tentar compreender o alcance de mais esse mau estar, a juntar a muitos outros.
Eis senão quando, o Brasil surge agora como o mais recente palco deste tipo de confrontações sociais, mas de cariz eminentemente político, com o tremendo impacto que se pode testemunhar pelas imagens que os canais noticiosos de televisão nos trazem em todos os noticiários. Surpreendentemente, quando se julgava que tudo corria pelo melhor naquele gigante da América do Sul, depois de grandes mudanças políticas e sociais, com a economia a crescer e o povo aparentemente mais bem cuidado, um pequeno detalhe, tão pequeno quanto vinte cêntimos do Real de aumento nos bilhetes dos transportes públicos, foi o pretexto para manifestações cada vez maiores, com início em S. Paulo, mas que rapidamente se alastraram a todo o território, num crescendo que soma, segundo as últimas notícias, cerca de uma centena de cidades, incluindo já Brasília, a capital federal. Do pequeno pretexto de vinte cêntimos, tudo cresceu até um estrondoso grito de protesto contra os despesismos do estado, com especial relevância para o que está a ser gasto em todas as infra-estruturas para o Mundial de Futebol. Mas também contra a corrupção, um dos mais graves problemas do país. A situação é de tal modo grave, porque a rebelião popular cada vez cresce mais, que as autoridades receiam sequer imaginar até onde a determinação do povo poderá ir. Seria quase impensável que o futebol, assunto quase sagrado no Brasil, servisse de motivo de protesto do povo brasileiro, se bem que a honra da sua selecção seja mantida incólume, mas a revolta tem antes a ver com o despesismo faustoso que está a ser feito nos estádios e outras obras de apoio, o que não agrada à maioria da população, que acha que esse dinheiro seria mais bem empregue para a consolidação do país.
Todos estes movimentos sociais têm tido um aliado e linha condutora comum. A globalização das comunicações através da Internet e a capacidade e força de penetração das redes sociais, que veiculam todos os acontecimentos em tempo quase real. Para as autoridades dos países que se confrontam com estas situações, isto é um elemento difícil de controlar, embora nas situações mais radicais se possam encontrar meios de combater esta disseminação de informação. Este elemento importantíssimo de difusão de notícias e de estabelecimento de contactos e convocação de manifestações, tornou-se assim de grande relevo, quer a nível interno dos territórios onde as acções se desenvolvem, quer na divulgação das notícias a nível internacional, o que faz destes acontecimentos, processos globais de angariação de apoios e informação generalizada.
Leva-me esta breve abordagem sobre estas novas formas de indignação, rebelião e exercício extremo da cidadania a dedicar alguma atenção à situação portuguesa, no que respeita à situação de grave crise que atravessamos. É certo, que em muitas das regiões ou países em que este tipo de acções tem eclodido, esse estado de contestação acaba por ser efémero, mas a sua afirmação é de tal modo assertiva e determinada que os seus efeitos acabam por produzir resultados, mesmo que não sejam todos aqueles que se propunham obter. Em Portugal, na presente situação, é verdade que já se têm esboçado movimentos com algumas dessas características, mas seria de esperar que, dada a gravidade das políticas seguidas por um governo que vendeu a sua legitimidade ao diabo, a determinação fosse muito maior e que, mesmo sem violência, as acções de protesto e revolta levadas a cabo até agora, já pudessem ter produzido alguns efeitos, face à arrogância do poder e mesmo à violência com que impõe os seus modelos de reformas e cortes nas capacidades económicas de um grande número de portugueses. A violência não se restringe à sua vertente física, mas abrange também uma vertente psicológica, ameaçadora e mesmo punitiva, que deveria merecer mais firmeza por parte de quem sente na pele os constantes ataques do governo. A situação a nível nacional exigiria uma contestação mais efectiva e consequente, de modo a combater, com instrumentos de igual peso, a falta de respeito, por parte do governo, em relação à integridade e dignidade de um povo que não pode ser culpado de tudo o que aconteceu, enquanto aqueles que verdadeiramente são os responsáveis pelo descalabro económico e financeiro em que nos encontramos, circulem por aí impunemente e ainda acusem os portugueses dos males que eles nos causaram e continuam a causar.
Esta aparente letargia dos cidadãos, só pode ter como causas os quarenta e oito anos de ditadura do Estado Novo, que gerou gerações inteiras de pessoas contidas, conformadas e receosas. Pessoas que não reagiam porque lhes foi incutida a ideia de que educação e cidadania eram sinónimo de aceitação de todos os infortúnios da vida. O conformismo era a grande virtude apregoada pelos eméritos educadores do povo. Mesmo assim, desta geração que fez a viragem do fascismo para a democracia, muitos há que conseguem pensar por si próprios e se adaptaram à vivência numa sociedade democrática e nela exercem os seus direitos e obrigações de forma digna e bem acordados, Mas que dizer então da geração pós 25 de Abril?… Podemos encontrar talvez a resposta a esta questão, na disfuncional acção dos chamados partidos do arco da governação, que em vez de abrirem as suas estruturas ao país novo que renascia, enclausuraram a juventude que a eles aderiu, nessa forma encapotada de universidades do poder, os “Jotas”, para assim fazerem perdurar na vida política do país, uma raça, em parte amorfa e em parte igualmente conformada, que pacientemente aguarda na fila a sua vez de imitarem os políticos mais velhos, com todos os tiques, defeitos e artimanhas de preservação do poder a qualquer custo. É claro que esta nova geração não vai pôr nada em causa, porque nessa sua quietude reside a esperança de um lugar no carrossel do poder. Quando o que se lhes pedia seria inquietude e insatisfação, dúvidas e busca de novas soluções. Integridade e dignidade também!…
O resto da juventude poderá ter todas estas qualidades, mas não chega, porque dos fornos de brando lume dos partidos do poder, estão constantemente a sair mortos vivos, jovens velhos e conformados com o futuro que já lhes foi injectado durante os seus anos de formação. Este tipo de nova geração tem já a formatação daqueles que se vão retirando e assim sucessivamente, porque o seu único objectivo é o poder e não o serviço público de ajudar a construir o país. E o poder é incompatível com o futuro.
Por: Ernani Balsa
“escreve sem o acordo ortográfico”
BREVE ENSAIO SOBRE O DIREITO DE REVOLTA…
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