Enquanto dedilho estas letras, lavra, impetuoso, um incêndio de ódio que ameaça varrer a Ucrânia, o 44º país em extensão territorial e o 2º da Europa, logo a seguir à Rússia Europeia – um país, além do mais, com uma riquíssima história milenar e que, depois de ter sido co-fundador da URSS, em 1922, dela se veio a separar em 24 de Agosto de 1991, tornando-se assim formalmente independente. Uma vez, porém, entregue a si próprio, eis que se soltaram do seu seio as forças autofágicas da corrupção que, com obscena avidez, têm vindo a sugar os colossais lucros provenientes ...
Read More »O CAUTELEIRO DO CHIADO
Só há Estado forte quando fortes são os valores em que se alicerça. E os valores que mais condizem com essa condição de Estado (do verbo latino sto, stare, steti, statum: estar firme e de pé, sem recuar) são a estabilidade, a verticalidade, a solidez, a coerência – para que possa ser confiável e respeitável na percepção que dele tem o cidadão. É, como se sabe, na fidelidade firme aos desígnios de devoção ao Bem Comum que os Estados encontram a sua legitimação ético-constitutiva. Ora, é essa aura de reverência e respeitabilidade que o nosso Estado – nosso não por ...
Read More »A Glosa do Tacho
Antigamente eram de barro, agora são quase todos de inox – muito mais refinados e sofisticados, para não deixar restos do refogado agarrados ao fundo. Os tachos de agora são, para nossa arrelia e desconsolo, mais bem poços sem fundo, autênticos sorvedouros dos recursos que se suporia destinados a providenciar à panela da sobrevivência de cada um. E a propósito de fundo do tacho, eis que virou moda converter alguns desses tachos em “fundos” para que, assim, alguns, uns tantos e os mesmos de sempre, possam rapar o fundo sem deixar rasto ou suspeita. Veja-se o que se está a ...
Read More »A Padeira de Aljubarrota
Portugal é um país fatal, porque é, bem vistas as coisas, de fatalismo que se nos vem plasmando a alma desde que o pai de todos nós nos gerou na revolta herética contra a própria mãe. Como se desse começo insultuoso e tortuosamente incestuoso nos ficasse a infectar o sangue um remorso que nos consome. Tempos houve, porém, em que reagimos com grandeza à fatalidade da geografia e, acossados por uma vizinhança ameaçadora, nos entregámos à fantástica aventura dos mares até quase nos assenhorearmos do mundo – e senhores dele nos teríamos realmente afirmado, não fora a reacção enciumada de ...
Read More »OS VENTOS DA HISTÓRIA
Referi-me, na semana passada, às recentes investidas do mar com o balanço trágico que se conhece, e devo ter deixado então a ideia de que esta fúria dos elementos que tão inclementemente nos tem fustigado, um pouco por toda a parte, se deve exclusivamente às descabeladas agressões que, com os nossos excessos e destemperos, temos vindo a infligir à Mãe-Natureza que, como sabemos, não suporta ser violentada. Há, porém, nesta visão um outro excesso que resulta da nossa pretensiosa convicção de que somos o centro todo-poderoso do universo, capazes de, através da nossa vontade e acção, determinar o curso da ...
Read More »O VÓRTICE POLAR
Não é bem a morte solitária, ultimamente tão publicitada, que causa impressão nestes casos – afinal morrer é o acto supremamente solitário. O que choca, ou que deveria chocar, é que, neste nosso tempo das redes sociais (do facebook e do twitter), neste tempo que se auto-intitula o tempo da comunicação por excelência, haja tanta gente e cada vez mais, dramaticamente mais, a viver na mais gélida e tumular solidão. Não é, pois, o estar só na morte que nos interpela – que aí estaremos inexoravelmente sós todos, mas que a Vida, essa sim, eminentemente comunhão e partilha, haja tanta ...
Read More »UMA ÉTICA DESLIZANTE
Há na vida deste nosso tempo, neste palco, imenso mas dramaticamente contraído à medida do nosso desatino, um protagonista ubíquo e encantador – ninguém lhe resiste. Ele inunda a cena com a profusa girândola das suas múltiplas cores e insuspeitados matizes. E mais: todos reclamam o exclusivo da sua incondicional veneração. Porque, afinal essa personagem maravilhosa tem os típicos condimentos do mito: todos se lhe rendem, mas quase ninguém o interpreta adequadamente. Nem isso admira, uma vez que o mito é uma imagem destemporalizada e significativa da realidade, é, enfim, uma totalidade de significação que cintila através do olhar situado ...
Read More »BALANÇO POSITIVO
Portugal é varrido de alto a baixo por um vendaval de luto que a todos sufoca numa raiva surda e impotente. Corre um rio de lágrimas nos corações de Portugal. Alguém que lhe trave o ímpeto, alguém que nos diga e mostre como diminuir-lhe o caudal. Nada. Ninguém. Sobra apenas a estridência de um silêncio de pedra que a todos oprime e esmaga. Bem se tenta, numa certa liturgia do exorcismo, afugentar o pesadelo, disfarçar o monstro. Como? Através de uma não menor monstruosidade – a daqueles macabros balanços comparativos da sinistralidade nas nossas estradas: «é positivo o balanço que ...
Read More »PASSAGEM DE ANO
Há dias uma senhora que me não via há algum tempo disparou com a certeza de um arqueiro olímpico: “o senhor está com óptimo aspecto, há-de dizer-me qual o segredo”. O que impressiona é a convicção da criatura: ela está absolutamente segura de que me está a fazer um grande elogio. Mas, bem vistas as coisas, não é isso elogio por aí além. Eu pelo menos não fiquei nada entusiasmado. Ela não fez mais do que exprimir a sua surpresa por, afinal, o meu aspecto não corresponder ao velho que ela me considera já e que julgava que eu deveria ...
Read More »O IMPASSE
É desígnio central da vida que ela possa evoluir – não, porém, pela caprichosa e exclusiva intervenção do acaso, como advogam os darwinistas mais ortodoxos, mas pelo impulso demiúrgico da intenção, isto é, da consciência. Ora, se a atenção de um povo, por via dos mecanismos miméticos da psicologia das massas, estiver fixada num padrão mental de fatalismo, de pobreza é isso precisamente que como realidade sua ele próprio constrói. Estamos no fundo da tabela e é aí que cremos dever estar, nós os portugueses. E esta mentalidade, esta atitude, é, como se sabe, a de uma atávica mendicância face ...
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