No actual léxico político-económico, há já bastante tempo que tinha sido introduzido o conceito de derrapagem, para classificar o desvio de valores orçamentais, nas suas mais variadas vertentes, quando o verdadeiro valor atingido, apresentava uma diferença para mais, relativamente ao valor inicialmente ajustado e inscrito nos orçamentos em causa.
Este tipo de derrapagem tornou-se tão comum, que quase passou a ser considerado como regra, relegando para o campo do pouco provável o esperado cumprimento dos números oficialmente inscritos nos orçamentos. Obra, empreendimento ou outro qualquer tipo de despesa a ser paga pelo Estado, passou então a medir-se, em termos de cumprimento, pela menor diferença possível entre o valor oficial e aquele que verdadeiramente conseguia ser atingido, depois de todos os não cumprimentos dum limite que passou a ser naturalmente negligenciado ou mesmo assumidamente ignorado.
A prática comummente aceite, acabou por digerir esta real anomalia e inscrevê-la, não no exigível, mas sim no possível, sem que essa falta de precisão e de respeito pelos números, parecesse abalar a integridade e idoneidade de pessoas responsáveis e instituições, tanto oficiais como empresariais.
Mas o efeito derrapagem, não mais abandonou o mundo da política nacional. Hoje em dia, o tipo de derrapagem mais em voga é a derrapagem ideológica, fenómeno que tem a ver com a diferença entre aquilo que várias forças partidárias dizem continuar a ser e aquilo que realmente praticam e defendem no seu exercício político do dia-a-dia. Uma coisa é a matriz programática inscrita nos princípios e estatutos de partidos políticos, outra é a realpolitik praticada pelos seus aparelhos e descaradamente defendida em programas e proclamações.
No quadro partidário português, casos há, que são verdadeiramente representativos deste tipo de derrapagem.
Tomemos como primeiro exemplo, o Partido Socialista (PS). Fundado em 19 de Abril de 1973, na Alemanha, por militantes da então Acção Socialista Portuguesa e tendo como seu primeiro Secretário-geral, Mário Soares, o PS afirmou-se numa linha demarcada pelo Socialismo e Liberdade, numa explícita alusão a um conceito cuja principal fonte de inspiração era uma sociedade sem classes e sem Marxismo. Querendo com isto demarcar-se do então já existente Partido Comunista Português (PCP), foram estes princípios ideológicos que marcaram os seus primeiros anos de existência, com especial relevo para a sua pronta adesão ao programa do Movimento das Forças Armadas, proclamado na madrugada de 25 de Abril de 1974. Depois duma forte oposição a pretensas manobras marxistas do PCP, conseguiu marcar a sua posição no terreno, não tendo, para tal, hesitado em “meter o socialismo na gaveta”, para melhor se demarcar de concepções mais esquerdistas, que lhe dificultavam a chegada ao poder, como sempre foi sua ambição. De concessão em concessão, de reconfiguração em reconfiguração, o PS é hoje em dia um partido muito mais próximo duma matriz social-democrata, nunca verdadeiramente assumida, o que faz dele apenas um partido com tradições, mas sem uma linha de orientação que o distinga relevantemente dos outros actuais partidos do arco do poder (ou da governação, segundo o léxico mais actual). É um partido sem identidade, que parece procurá-la a todo o instante, mas tem receio de assumir o que quer que seja. O eterno apelo e apego pelo poder, naquilo que considera ser um desígnio nacional, arrasta-o consecutivamente para uma espiral de deriva ideológica, em que conta mais o pragmatismo duma alternativa sem fim nem resultados significantes do que uma verdadeira corrente de pensamento socialista.
No caso do Partido Social Democrata (PSD), que começou por ser Partido Popular Democrático (PPD), fundado a 6 de Maio de 1974, a sua matriz assenta naturalmente na Social-democracia, tendo tido como seu primeiro Secretário-geral, Francisco Sá Carneiro, um ex-deputado da anterior Acção Nacional Popular, líder da Ala Liberal da Assembleia Nacional, que constituía já um embrião duma oposição parlamentar, que uma certa abertura do Presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, vinha permitindo durante a chamada Primavera Marcelista. O PPD, mais tarde PSD, teve sempre como referência os ideais da Social-democracia do norte da Europa e uma forte ligação e apoio internos, por parte das populações campesinas do norte de Portugal, bem assim como do sector dos pequenos empresários, que viam no PSD a melhor defesa para a iniciativa privada. A sua rápida ascensão no espectro partidário português, colocou-o definitivamente no malfadado arco da governação, onde todas as ideologias são cilindradas, Daí até a uma completa derrapagem ideológica, foi um simples passo. Afastados os chamados barões do PSD, quer por vontade própria de gozarem um crepúsculo político mais descansado, quer por outras manobras de guerra do poder, manobras essas em que este partido sempre foi um exímio manipulador, e como resposta a um exercício de poder tão autoritário quanto alucinante, por parte do PS, na pessoa de José Sócrates, emerge finalmente a fina flor da Jota social-democrata, que pelo caminho já se libertara desse aborrecido espartilho ideológico e agora surgia em todo o esplendor de um neo-liberalismo agressivo, cruel e sem dó. Pedro Passos Coelho, um dos delfins do PSD, protegido de Ângelo Correia e à sua imagem moldado, surge, no entanto, numa versão tipo andróide da nova política de combate ao estado social e a tudo o que signifique uma protecção, por ele considerada exagerada, a todas as camadas da população. A sua ligação a Ângelo Correia parece já ferida de morte, quando este último o considera agora incompetente para governar. É assim como o pequeno monstro criado em laboratório, que às tantas quebrou as amarras, saiu da proveta onde apenas era um teste e por aí circula imparável e destrutivo, ainda por cima com as rédeas do poder nas mãos. Na sua visão, apenas os grandes grupos financeiros, porque geradores de riqueza, merecem a sua protecção, muitas vezes confundida com submissão e isto, não numa perspectiva de repartição dos seus lucros, mas antes numa linha de engrandecimento da riqueza desses grupos, assente naquilo que ele considera ser a justiça do empobrecimento das populações, que se habituaram a viver acima das suas possibilidades.
O drama de tudo isto, é que, sendo tão diminutas as diferenças entre a prática pseudo social-democrata do PS e o neo-liberalismo desenfreado e louco do PSD, o arco da governação passou a ser um arco de fogo, onde tudo à sua volta é passível de arder, arrastando na sua voraz crepitação, as instituições e o que resta de um estado social em que as pessoas acreditaram e à volta do qual ergueram os seus sonhos e projectos. A alternância assim criada ao nível do poder, matou a possibilidade de existência de alternativas e de soluções novas, pois nenhum dos dois protagonistas, PS e PSD, abandonam a sua sanha imparável de governar por governar e não governar para resolver os verdadeiros problemas do país. São dois monstros em luta constante pela supremacia do nada.
É verdade que existem mais partidos no espectro partidário português. O CDS-PP constituiu-se como o partido táxi do sistema, que tanto dá boleia a um como a outro, dependendo das necessidades do momento. Quanto aos chamados partidos de esquerda, o PCP e o BE, a sua consecutiva persistência em se manterem fieis a um mínimo de ideologia, factor que os distingue dos demais, não os coloca como candidatos a qualquer tipo de coligação. Mas esta coligação, a ser considerada, apenas poderia ter como elemento aglutinador, o PS. Ora o PS está possuído pela febre do poder e por uma fé sem dimensão de que há-de conseguir levar a água ao seu moinho, sem a ajuda de partidos que ele considera aventureiristas e fora da realidade da Europa. Uma Europa que ninguém verdadeiramente sabe para onde vai, mas que se sabe estar numa completa deriva de objectivos sociais e políticos, auto alimentando-se apenas de produtos económicos e financeiros.
É este o cenário dramático que temos. Porque geralmente, depois de sucessivas derrapagens, vem o desastre total. O embate. O despiste. O muro ou o precipício. O caos. E mesmo quando há sobreviventes, o mais certo é ficarem estropiados. Nós todos!…
Por Ernani Balsa
“escreve sem acordo ortográfico”