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DIVINA CONDIÇÃO

J. Antunes de Sousa

É o problema de sempre: não se tolera um ai a quem se crê ter o supremo dever de estar calado – o que não é, nem pouco mais ou menos, o mesmo que estar em silêncio!
E àqueles que fazem da vida um exercício de dádiva aos seus concidadãos, que se esmifram e consomem num quase holocausto diário de entrega e dedicação não há quem lhes dê uma mão – a não ser para os empurrar ou agredir. É como os bombeiros: ah, eles são voluntários, então já têm a paga no gosto que lhes dá fazer aquilo que querem.
Enfim, neste nosso tempo de saque e rapinagem, o acto de dar tem o seu prestígio muito abalado – só vale o que é caro. E quem surripia bens de primeira necessidade da prateleira do hipermercado trama-se – só dá sacar à grande!
Por isso, as escolas têm quase todas elas, como patronos, gente, desde logo morta, certamente ilustre, mas pelintra: Camões que morreu na miséria, Gil Vicente, talvez não tanto, mas não consta que fosse rico, apesar de escrever para dois patrões, Pedro Nunes, que naquele tempo ainda não havia o prémio Nobel, Passos Manuel que, retirado, definhou só e sem cheta. E o próprio Alexandre Herculano teve que dedicar-se à vinha e à azeitona para fugir ao destino do aperto e da aflição. Não há escolas com o nome de ricos, Américo Amorim ou Belmiro de Azevedo – desde logo porque são vivos – e só depois de não poderem mexer mais! Creio que deram o nome de Alfredo da Silva a uma escola do Barreiro – mas certamente mais pelo que fez pelos pobres do que pelo rico que foi!
Imagino, por isso, o sarilho que vai ser quando, no futuro, quiserem dar o nome de uma personalidade da Democracia a uma escola – isto, claro, se ainda houver clientes para abrir novas, o que é tragicamente duvidoso. Porque vai ser muito difícil encontrar um pobre – talvez o Cavaco que se vê à brocha para pagar a água e a luz!
Já Platão se vira em palpos-de-aranha e não fora a cumplicidade corajosa de um amigo e ter-se-ia irmanado com Sócrates no trágico destino da desconfiança e incompreensão.
Que admira, pois, que a função do professor continue pelas ruas da amargura? Ao poder inquieta essa sua perigosa mania de semear ideias esquisitas na moleirinha das criancinhas – que se querem contentinhas e alinhadinhas, se possível, afinadinhas e em coro a cantar o hino.
Como agora se inventou – tiradas da Democracia! – essa coisa, que parece bem, mas que incomoda que se farta, a autonomia das escolas, aos professores é preciso domesticá-los com trabalhos forçados e mantê-los no fio da navalha, isto é, instáveis e à beira de, a qualquer momento, poderem ir para a rua – a morada oficial do desespero.
Bem, mas há mais – muito mais. A verdade é que o professor é mal pago em toda a parte – sempre foi: «já na Suméria ganhavam uma merda» – desabafa um dos personagens do romance Signo Sinal de Vergílio Ferreira.
Sempre se achou que a actividade de professor não tem preço, elogio que o governo leva a sério e à letra: como não há dinheiro que pague tão sublime tarefa, não paga nada. Se não tem preço tal função então o nosso (a)preço por ela é…zero!
Mais: não se diz que é divina a função de ensinar? Eis que também aqui, quer no plano da lógica quer no da teologia, é irrepreensível a interpretação do Estado: de que se queixam, pois? Querem, mais dinheiro? – Deus não come!
O governo é exemplarmente consequente: dada a sua condição divina, os professores são seres invisíveis, subtis e ubíquos – não comem, fazem de tudo e estão prodigiosamente em toda a parte!
Por isso, é muito estranho que, de repente, esquecidos, se calhar, da sua doce condição de anjos protectores, se tenham atirado ao governo clamando contra as quarenta horas e contra a famigerada mobilidade, versão refinada do slogan turístico “vá para fora cá dentro”.
Trabalho lectivo a mais? Mas como, se são milagreiros na arte admirável de fazerem de tudo a qualquer hora? Não é isso o dever do anjo da guarda?
Que, com a tal mobilidade, vai haver muita gente atirada para exílio de muitos quilómetros? Mas como, se é da própria natureza de Deus estar Todo em toda a parte?
Sinceramente não há saco para aturar esta impertinente revolta de deuses e anjos – que se mantenham no seu Olimpo, que é onde eles são verdadeiramente grandes! Aí continuarão sem precisar de comer – e o Gaspar poupará mais uns euros, a ver se consegue acertar numa previsão – a menos que chova muito! Aí a previsão sairá «adversamente afectada».
Ah, e nessa tal previsão, alguém que se lembrasse de incluir as expectativas dos nossos miúdos.
Mas não.
Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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