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Doenças raras e o papel da Medicina Interna em Portugal
Doenças raras e o papel da Medicina Interna em Portugal

Doenças raras e o papel da Medicina Interna em Portugal

A situação de doença é sempre um momento de particular vulnerabilidade e fragilidade humana não só para o próprio, mas também para os seus familiares e entes próximos. Como Médicos somos constantemente interpelados pela Pessoa em processo de doença, com o sofrimento que muitas vezes lhe está inerente, e desafiados a compreender a sua situação individual, mas também familiar e social, de forma a estabelecer um plano de diagnóstico, tratamento e acompanhamento. Na esteira de William Osler, o desafio será ir mais além de compreender a doença que a pessoa tem, será o de compreender a pessoa que tem a doença. É, portanto, colocando a Pessoa no centro da ação que a nossa atividade se torna completa, abrangente e efetiva.

Seguindo esta linha de orientação, a prática médica atual não se compadece com uma atuação médica isolada e uma das pedras de toque da praxis contemporânea é precisamente a integração da discussão do caso individual numa equipa multidisciplinar em que o médico é um dos interlocutores, longe de ser o único. Noutro nível de atuação, os sistemas de saúde, como entidades coletivas que se colocam acima do plano individual, serão responsáveis pela elaboração de políticas e formas de organização para que este encontro sublime disponha das melhores condições para ter lugar. A complexidade destas questões torna-se particularmente difícil quando o caso que temos pela frente é a Pessoa com doença rara. Ser portador de uma doença rara significa frequentemente o confronto com um vasto conjunto de duras realidades, onde se destacam as dificuldades em obter um diagnóstico, em aceder a tratamentos específicos e receber cuidados de saúde coordenados, mas também numa perspetiva mais abrangente, em dificuldades a nível de emprego, educação, vida social e saúde mental, dificuldades essas que frequentemente se estendem aos cuidadores. A título de exemplo, o próprio diagnóstico reveste-se de um grau de complexidade importante sendo a designação “odisseia diagnóstica” bastante expressiva para descrever o impacto do tempo até chegar ao diagnóstico final. De facto, em média uma pessoa com doença rara espera quatro anos até obter o diagnóstico (às vezes até mais de 20 anos), recebe três diagnósticos errados e consulta cinco médicos diferentes!

Mas antes de mais, será necessário definir o problema e perceber a sua abrangência. Em termos gerais, uma doença rara será uma condição que afeta uma pequena percentagem da população comparativamente com outras mais prevalentes. A definição varia, mas na União Europeia e em Portugal, as doenças raras correspondem àquelas que têm uma prevalência na população inferior a 5 por 10.000 pessoas, ou seja, afetando 1 em cada 2.000 pessoas (decisão 1295/1999/CE do Parlamento Europeu). Estas doenças, sendo individualmente raras (algumas delas têm prevalências inferiores a 1 caso por 100.000 habitantes), são na verdade coletivamente frequentes. De facto, estima-se que existam entre 5000 a 8000 doenças raras, sendo que novas entidades são acrescentadas regularmente à lista, afetando cerca de 6% da população portuguesa. Apenas 400 destas patologias têm tratamento específico e cerca de 80% têm uma causa genética associada. Uma parte significativa é diagnosticada na infância, mas muitas têm expressão no adulto, sendo frequentemente crónicas e acompanhadas por morbilidade significativa. Tal como é referido no documento acima citado, a própria raridade das doenças de prevalência reduzida e a falta de informações acerca delas pode levar a que as pessoas afetadas não beneficiem dos recursos e dos serviços de saúde de que necessitam. Estes fatores são também responsáveis por estes doentes serem pouco atingidos pelas intervenções gerais no setor da saúde. Daí a necessidade de iniciativas próprias para a abordagem destas doenças na comunidade como o “Rare Diseases Task Force” na Europa e o “US Office of Rare Diseases” nos Estados Unidos da América. Em Portugal, o Plano Nacional de Saúde também reconhece a importância de criar planos específicos para esta área, o que conduziu à criação da Estratégia Integrada para as Doenças Raras 2015-2020. O objetivo desta Estratégia é garantir que as pessoas com doença rara tenham melhor acesso, qualidade dos cuidados de saúde e de tratamento, com base nas evidências que a ciência tem vindo a produzir, e maior celeridade e variedade de respostas sociais adaptadas a cada caso.

Tem como missão desenvolver e melhorar: a) a coordenação dos cuidados; b) o acesso ao diagnóstico precoce; c) o acesso ao tratamento; d) a informação clínica e epidemiológica; e) a investigação; f) a inclusão social e a cidadania. Um fruto desta estratégia é a criação da Rede Nacional de Centros de Referência de Doenças Raras de forma a estruturar uma rede nacional de centros de referência, devidamente acreditados com base em critérios objetivos de elegibilidade. Estes centros devem estar organizados de forma a permitir o desenvolvimento da sua capacidade máxima para diagnosticar e tratar adequadamente e com precocidade todos os doentes, informar e apoiar os outros elementos da família, estabelecer ligação com restantes apoios médicos e sociais (incluindo realizar uma eficaz articulação com médicos assistentes dos doentes e famílias) e participar ativamente no ensino e na investigação e registo da respetiva patologia. Outro fruto desta estratégia é a criação do Cartão da Pessoa com Doença Rara de forma a garantir o acesso a informação relevante sobre a doença em causa, nomeadamente a recomendações para tratamento de emergência nos serviços de urgência, melhorar o cuidado integrado da patologia, garantir a referenciação adequada aos centros de referência e melhorar a continuidade de cuidados. Anualmente a Direção Geral de Saúde publica um relatório sobre as atividades planeadas para esse ano referentes às prioridades estratégias enunciadas acima e onde é possível acompanhar os esforços realizados e as áreas a desenvolver.

Depois de entender as especificidades ligadas a esta área, e que a tornam diferente de outras áreas da Medicina, é perfeitamente claro que o profissional de saúde que se confronta com um doente portador de doença rara tem de estar inserido numa rede de cuidados alargada. Este tipo de patologias necessita de uma abordagem por equipa profissional experiente, multidisciplinar, altamente especializada, que permita orientar todo o envolvimento do doente/família, nas diferentes vertentes, do campo médico ao familiar/comunitário, com cuidados que se traduzam em melhorias significativas na qualidade de vida e custo-efetividade dos cuidados prestados. Requer também equipa competente, que dissemine boas práticas e informação a outros profissionais e que promova envolvência correspondente na área da atividade pedagógica, científica, de investigação alicerçada em estrutura hospitalar reconhecida pelos conhecimentos técnicos e pelos elevados cuidados de saúde prestados a doentes com situações clínicas que exigem uma especial concentração de recursos, de conhecimento e experiência. Sendo certo que muitas das doenças raras são diagnosticadas em idade pediátrica, o médico de adultos por várias razões também contacta com esta realidade. No âmbito específico das doenças hereditárias do metabolismo, por exemplo, o doente tipo na clínica de adultos poder-se-á inserir em quatro grandes grupos: diagnóstico tardio de formas atenuadas, formas de início precoce que chegaram à idade adulta, doentes com apresentação na infância, mas em quem o diagnóstico não foi efetuado, e estudo de familiares a partir de casos índex. Muitas doenças raras afetam múltiplos sistemas do organismo o que significa, como já foi dito, que diferentes profissionais de saúde podem estar envolvidos nos cuidados destes doentes. Mas, para que os cuidados de saúde sejam estruturados, é central a figura do Coordenador de Cuidados que, no caso da medicina de adultos, fica habitualmente a cargo do médico internista. Este, pelas especificidades da sua formação integradora, multidisciplinar, abrangente e dialogadora com as diferentes especialidades, pode assumir o papel daquilo que muitos autores designam como o Gestor do Doente.

Sem cuidados adequadamente coordenados, sem este Gestor, os pacientes afetados por doenças raras têm necessidade de dedicar quantidades significativas de tempo e esforço, muitas vezes com grande sacrifício, para estar presentes em diferentes consultas de diferentes especialidades e em diferentes hospitais. Para atender às diferentes consultas relativas à sua condição, o portador de doença rara gasta em média uma a duas horas de viagem e tem pelo menos três consultas por mês. Tudo isto causa enorme desgaste e é causa frequente de absentismo e abandono da atividade profissional do próprio ou dos cuidadores. Por isso, a figura do coordenador de cuidados, que na área da medicina de adultos pertence, pelas suas habilidades de formação, por excelência à Medicina Interna, é central para os cuidados destes doentes. Idealmente, portanto, trata-se de um profissional treinado responsável pela elaboração e execução de um plano de cuidados global garantindo que estes são o mais integrados e lineares possível. Com particular atenção aos cuidados de transição, ou seja, às particularidades e vulnerabilidades dos doentes que durante uma parte significativa da vida estiveram sob a alçada da Pediatria e que agora, fruto do seu crescimento, são acolhidos na área da Medicina de Adultos. Os coordenadores de cuidados, no âmbito de um Centro de Referência, podem assim contribuir para que o paciente tenha uma experiência positiva dos cuidados de saúde específicos de que necessita, facilitando suporte e atenção específicos de forma a permitir o auto-cuidado e auto-valorização, evitando admissões hospitalares ou, quando estas são inevitáveis, iniciando as medidas de emergências específicas imprescindíveis, permitindo a acesso a novas formas de diagnóstico e terapêutica, estabelecendo diálogo com os vários centros de investigação e pesquisa e, sem esquecer a dimensão familiar e social, garantindo um plano de cuidados integral de que estes doentes tanto precisam.

Atentos ao sentido de evolução da ciência médica e ao que se espera nos próximos anos e procurando formas de aplicar este conhecimento e de o rentabilizar. Tudo isto é fundamental e benéfico não só para os pacientes e suas famílias, mas também em última análise, e numa perspetiva mais ampla, para o próprio sistema de saúde.

Paulo Castro Chaves
Consultor de Medicina Interna / Professor Auxiliar convidado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

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