Vivemos momentos que são históricos e que, à semelhança de outras catástrofes sociais, serão lembrados e servirão de exemplo futuro para que as gerações vindouras se poupem à nossa ingenuidade.
Facilmente apontamos o dedo a políticos que não elegemos, pois, o sistema eleitoral é refém de uma fraude política. Saímos de um sistema de partido único, férreo, centralizado e com critérios para um sistema de partidos, indefinido e sem critérios. Veja-se que os deputados são arrumados consoante uma lógica de colocar figuras sem qualquer vaga para representantes de quem quer que seja.
O poder serve patrões que não somos nós. A revolução francesa tinha a quem imputar e responsabilizar pelo colapso social e político. O rei representava o poder e a si próprio.
Hoje enchem-nos os olhos com vibrantes e deslumbrantes caleidoscópios que, quebrados após as eleições, revelam a sua vacuidade feita de contas e espelhos e nos quais não é possível consubstanciar nada pois tudo o que recolhemos foram imagens e, essas mesmas, nada mais eram que miragens.
Perdemos a inocência e percebemos que estamos encurralados. Suba quem subir, sairá sempre do mesmo bolso, onde existe uma interminável reserva de robertos estridentes e caceteiros que murcham logo após os aplausos.
Representa-se actualmente uma micropeça teatral, Gisberta, que me assome ao pensamento pois o seu quarto de hora de representação pouco mais breve deve ser que o circo pós-eleitoral durante o qual, depois de embalados nas campanhas, nos tentam adormecer por mais algum tempo.
Tudo o que digo é sentido e vivido por todos nós. Não é em si novidade ou surpresa.
O que quero denunciar aqui somos nós todos. Sim, nós todos.
Facilmente o dedo retesado aponta para fora e fulmina, qual carabina, qualquer ser que se interponha entre nós e o horizonte.
Nós, as vítimas não nos confessamos. Sacudimos e acusamos. Desresponsabilizamo-nos. Ou seja, pomo-nos a jeito. Se não assumimos a responsabilidade pelos nossos actos, se abdicamos, expomos os nossos cândidos flancos, não ao algoz mas, ao rapace. Quase como entregar a um cão desconhecido a guarda do talho.
Vejamos…
Durante anos invejámos as fortunas instantâneas e fáceis. Durante décadas abominámos o trabalho revelando nojo por quem ganhava a vida sem o conforto de um emprego como se quem se “sujeitava” ao trabalho fosse um pária social imprestável e repugnante.
Somos um país onde há filhos que se sentem de uma casta superior aos pais que se rasgaram para lhes dar um futuro e uma licenciatura. Somos um povo que bajula o poder, que odeia esses mesmos licenciados mas que se empenha para dar aos filhos essa mesma distinção acessível pela licenciatura.
Neste país não há competência nem coragem para reconhecer capacidades nem méritos, salvo as obtusidades ocas dos populares programas de embrutecimento programado, trucidando-se a generosidade e qualidade das pessoas capazes e dos jovens prometedores. O esforço e empenho são humilhados como se a lealdade e seriedade do compromisso de dar o melhor de cada um fossem um convite à humilhação e ao escárnio.
Temos uma Nação hipotecada quando podíamos viver com conforto se, na ânsia de ser ricos e abastados, alinhámos na canção da D. Branca oficial e autorizada, do imobiliário selvagem dos 1000% ao ano de valorização, sem inspecção financeira, retorno fiscal nem controle especulativo cúmplice das financeiras com o beneplácito dos representantes de todos aqueles que lucravam efectivamente e com segurança com esta espiral abstracta que, qual vaca soprada por desvairados ventos, se despenharia forçosamente no primeiro instante de viragem dos ventos.
Porque é que as instituições fiscalizadoras tiveram sempre tão poucos efectivos?
Quem se perguntou porquê e descobriu a resposta?
Porque foram perdidas as compensações por doença prejudicando as pessoas honestas que, efectivamente, doentes não tinham alternativas?
Qual a razão porque há tanta reforma pelas mais alucinantes incapacidades e as pessoas que por doença grave ou incapacidade adquirida para o trabalho se vê sujeita a autênticos tribunais de Inquisição como criminosos fossem?
Embalámos e fomos empurrando com a barriga o desconcerto do mundo, mais preocupados em violar a regra na esperança de, também, podermos trepar ao tacho, olhando para aqueles que notoriamente ofendiam a decência com as suas fortunas desonestas alarvemente exibidas, alardeadas e provocadoras, com iniludível inveja e cumplicidade intelectual.
Desbaratámos os nossos recursos em encargos assumidos irreflectida e irresponsavelmente, abrindo uma chaga moral e ética oferecida ao apetite infecto dos carniceiros sociais.
Hoje assistimos ao despudor da admissão que a morte é uma forma mais barata e financeiramente mais desejável de saneamento financeiro poupando as esmolas que muitos recebem sob a designação metafórica de reforma. Encontro noutras paragens esta leitura de sermos vistos como gado, inclusive na desejabilidade do abate, por parte de quem, nos bastidores, se encarniça por espoliar povos e nações dos seus recursos.
Em Portugal esta nossa subserviência, adquirida ao longo de séculos de promoção da mediocridade da sobrevivência e fausto sem nada produzir e na condenação à abjecção do trabalho honesto, já a conhecia. Gil Vicente bem nos avisa nos seus Autos, que talvez nos tivessem ajudado se fossem de contra-ordenação. O nosso silêncio ovino entendo-o, como o eco da má consciência que só tarde demais compreende o monstro que chocou.
Temos capacidade para mudar. Para denunciar, aquilo a que assistimos e a nós próprios. Não como um qualquer bufo sem carácter ou vingativo mas como alguém que aponta, expõe e procura com a sua conduta, atitude e juízo combater e corrigir, mesmo em pequenos actos de educação e de civismo, ao ceder a passagem nas passadeiras, o lugar nos transportes, um agradecimento ou uma gentileza, mudar o mundo ao alcance do seu braço.
O mundo tem melhorado mas com o trabalho de milhões de anónimos que ao longo da História construíram este presente que vivemos e que ainda continua a ser melhor que o desses obreiros. Trabalhemos nós para não permitirmos ceder às nossas paixões mais baixas e para impedirmos de nos oferecer quais cordeiros em sacrifício aos deuses pagãos da cupidez e da finança.
O que tem isto a ver com assédio moral?
Tem a ver com o facto de permitirmos que nos violentem sem procurar justiça nem reparação e sem agir de modo a prevenir agressões futuras a quem quer que seja. De pequenas violências psicológicas consentidas se consubstanciam actos brutais e destrutivos. Há acidentes, que os há. Há facilitismos e, destes, só de nós nos podemos queixar quando abdicámos da acção e da prevenção.
Para exigirmos temos de ter legitimidade e para a ter temos de agir em conformidade, ainda para mais numa época em que manter alguma privacidade, ainda mais como colectivo, é uma quimera mais que mitológica.
Por: Nuno Gonçalves
“escreve sem acordo ortográfico”