Este novo Papa, recatado, quase tímido na sua gestualidade, bem mais perto do aceno tacteante da criança do que do gesto hierático, esfíngico, notoriamente teatral, de Pio XII, é, se bem repararmos, um sábio do gesto: ele vivencia, bem no íntimo de si, a carga projectiva e simbólica de cada gesto que produz, entendido este não como mera mímica, mas como iniciativa, que é também uma iniciação – como sinal que inaugura nova senda de sentido.
Dir-se-ia que, num homem desarmada e desarmantemente hirto, quase não sabendo como e onde arrumar as mãos, eis que abundam, qual torrente refrescante em tempo duro de sequio, gestos de convocação e de interpelação.
Como este último – o de celebrar uma missa em casco de navio naufragado em memória dum sem-número de náufragos sem nome, sem rosto e, já agora, sem rasto, engolidos que foram pelo mar encapelado de uma globalização, também ela, sem rosto, uma «globalização da indiferença», e cujo lema, ao contrário do que o próprio nome pareceria sugerir, não é incluir a todos, mas excluir tudo o que não seja o deus-lucro de alguns.
Querem os meus amigos saber o que vai sobretudo caracterizar o pontificado do Papa Bergoglio? O primeiro sinal disso, de que vai ser, mais que tudo, um empenhado exercício de repristinação da mensagem cristã, isto é, de regresso à radicalidade fontal do Evangelho e do testemunho vivencial das primeiras comunidades cristãs, está naquele impulso de, no meio do estalido das palmas cardinalícias, e inspirado na exortação do amigo cardeal brasileiro, ter optado pelo nome do santo que, nos séculos XII e XIII, a tudo isso se propusera, numa intuição luminosa que perdura até hoje, um santo de quem Vergílio Ferreira, confessamente ateu, tanto gostava.
Mas se dúvidas houvera ainda acerca de tão ousado e urgente desiderato, o facto de ter escolhido a ilha de Lampedusa, janela mediterrânica para a esperança de tantos seres que, querendo pular do fortim geográfico da condenação para a terra do sonho, arriscam, aos milhares, darem-se em festivo manjar aos habitantes das funduras deste mar-cemitério, o facto, dizia, de, na sua primeira deslocação fora do perímetro da romana diocese, ter visitado o cenário homérico de um dos mais humilhantes dramas da actualidade e ter tomado lugar na corveta que tantos, prestes a afogar-se, tem salvado, confirma sugestivamente o seu zelo preferencial pelos pobres e excluídos – ao mesmo tempo que ele próprio se despoja de todos os sinais sumptuários de pompa e ostentação, num claro apelo á «Igreja pobre, Igreja dos pobres».
Neste cirúrgico e eloquente gesto, toda a carga, pois, de uma sentida confrontação da nossa benigna consciência, que perdeu «a capacidade de chorar», com a náusea provinda dos escombros humanos de uma globalização cujo pecado original está em não ser nem para todos os homens nem para o Homem todo. E eis que, com voz sumida, semi-plangente, numa missa de desagravo mas também de um matutino despertar, o papa rezou por todos aqueles “por quem ninguém chora”.
Mas é por causa disso, por haver tantos sem lugar onde repousem os ossos, sem um lugar que se veja num qualquer cemitério, tantos de quem não há sequer réstia de lembrança, tantos, meus Deus, devorados por tubarões no fundo dos mares, depois de o terem sido em vida (vida?) por uns outros tubarões cuja voracidade assassina parece incontível e infinita, é por causa disso, dizia, que o rastilho brasileiro vai, mais tarde ou mais cedo, acabar por incendiar o mundo para que uma nova manhã desponte – não o amanhã dum artificial igualitarismo, alegadamente edénico, mas uma manhã mesmo, que traga o sol no ventre e em que cada um, inteiro na sua radical liberdade, disponha de igualdade de oportunidades para criar – que é esse o nosso destino!
E foi na singeleza desprendida de um apenas estar, com aquele ar doce e meigo de um homem de paz, que o Papa Francisco, a bordo da barca do futuro, lançou um grito de alerta – que se está navegar sem rumo certo! – a este mundo desconcertado que parece vogar ao sabor da inadvertência e da insensatez.
Ah, e neste tempo de exames, deixem-me exprimir um voto: que a escola ensine não a ganhar a vida, mas a vivê-la! Aí a chave de um novo mundo que está a chegar, não tarda!
Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”