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ENSAIO SOBRE A LOUCURA

J. Antunes de Sousa

J. Antunes de Sousa

Uma das obras mais significativas de Karl Raymond Popper, um dos mais notáveis filósofos do século XX, é, como se sabe, “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, que os tem – e muitos!

E, de entre eles, um dos mais encarniçados e traiçoeiros esconde-se, sob a capa da prestação de um serviço público, por detrás do que sabemos ser o desígnio essencial da própria democracia – a abertura. Sim, que só há abertura quando são diversos e efectivos os instrumentos de comunicação. Esse inimigo tem, pois, o privilégio de sê-lo de forma ínvia e paradoxal, já que é da sua natureza abrir perspectivas e propiciar o diálogo, o debate, enfim, a diversidade de opiniões. Falo, aposto que já adivinharam, da televisão, claro.

Corrijo: não da televisão em absoluto, mas desta televisão. Porque ela, ao hipotecar-se incondicionalmente ao primado do lucro, optou, regra geral, pelo princípio minimalista da popularidade: «oferecer às pessoas o que elas esperam». Repare-se, porém, que é para as multidões, para as massas, que esta televisão concebe a sua actividade – não é para a pessoa!

E, bem sabemos, com Gustave Le Bon, como «são imbecis as multidões», impulsionadas pelo único critério, rasteiro e raso, da sua «unidade mental», isto é, todos unidos pela mesma emoção – e sabemos todos muito bem onde moram as emoções: no rés-do-chão, abaixo do umbigo!

Sejamos claros: esta televisão não atrai, distrai; ela não contém, entretém; não educa, deseduca; não forma, formata; enfim, ela não entusiasma (entusiasmo: emoção de Deus, mesmo etimologicamente), deprime (depressão: a cama do diabo!).

Aliás, o próprio Popper, no seu livrinho que partilha com John Condry, “A Televisão: Um Perigo para a Democracia”, censurando asperamente o critério facilitista das televisões que consiste em adequar a sua programação ao «que as pessoas esperam», declara resolutamente: «Nessas circunstâncias, só nos resta ir para o inferno!»

Vem isto a propósito da mais recente recaída da Televisão Pública: não satisfeita com a indecorosa exibição das chamas à hora de jantar, talvez por um qualquer reflexo associado ao fatídico 11 de Setembro, dedicou, ontem, um documentário, com laivos de uma esganiçada seriedade, aos diabos que as têm ateado – sempre, e uma vez mais, invocando o desvanecedor dever de informar as pessoas que, neste nosso país da codilhice, se pelam por uma espreitadela pelo buraco da fechadura, sobre a bizarra textura dos miolos destes maníacos. E a vários deles foi inclusive concedida a glória de vomitarem para o nosso prato o lixo das suas asquerosas motivações. No meio de tudo isto, até o momento glorioso de um psiquiatra-carcereiro que, num espasmo de jactância cientista, garantiu a cura definitiva de alguns dos seus pacientes – tudo redondinho e fiável para o requerido ar de dignidade e pública utilidade. E eis como se alimenta o ciclo da loucura: deitamos-lhes a unha e fechamo-los num quarto escuro para, por contraste, podermos dormir em paz e ressalvar a nossa sanidade e, com isso, resgatarmos a nossa má consciência, simulando que os conseguimos curar e reabilitar – sim: ficam prontos para outra!

Michel de Foucault dedicou toda uma vida ao estudo da loucura, desde a Idade Clássica aos nossos dias e, curiosamente, de entre as suas muitas obras, sobressaem duas, desde logo, pela sugestividade do título: “O Poder Psiquiátrico” e “ Os Anormais”. A loucura é, segundo este autor estruturalista, gerada pela própria sociedade, organizada doentiamente à volta do omnívoro critério de uma razão de poder – um poder que se impõe ao indivíduo que, às tantas, não aguenta o controlo que sobre ele é exercido – uma pressão de explodir!

Louca é, pois, esta nossa sociedade que gera estes loucos, estes anormais – eles espelham a nossa perversa percepção de um mundo conquistador e hostil! E uma televisão que, assumindo como critério de verdade a própria voz do povo, julga exorcizar a própria loucura, isolando – e explicando (?) – a loucura de alguns, o que, em última instância, faz é confirmar a loucura de todos – a de nós todos. E, assim, se cumprirá o veredicto de Popper: acabamos por ir parar todos ao inferno!

E tudo isto coincidiu, meus amigos, com a institucionalização parlamentar do inferno de verão: no âmbito da Comissão de Agricultura, foi criado um grupo de trabalho sobre incêndios florestais – que é o que se costuma fazer quando se está mais interessado na perpetuação do problema do que na sua rápida e eficaz solução!

O problema dos fogos não é tanto uma questão de bombeiros – é sobretudo uma questão de ética e de amor pelo património nacional. Quando acorrem os bombeiros, infelizmente, já pouco ou nada há a fazer e têm, por isso, vindo a pagar com a vida essa sua heroica exposição: o mal, estando também nas chamas, está sobretudo no coração sem princípios de quem as propagou, ou, mais ainda, de quem covardemente as mandou atear.

E pergunta-se: por que razão a televisão, as televisões, se esfalfam para dar um primeiro plano das chamas que nos devoram a alma e não têm uma imagem sequer para nos mostrar da manifestação de deputados europeus em pleno Parlamento contra a Troika em Chipre, em Portugal, na Grécia, em Espanha (sim, em Espanha!) e na Irlanda?

Ou por que é que não têm uma palavra sobre o exemplar caso da Islândia, um caso pioneiro de regeneração cívica e moral a partir da dinâmica da sociedade civil?

Sabem porquê? Porque os muitos inimigos de uma verdadeira «sociedade aberta» unem-se na conjura e na perversão de manterem as portas abertas só para alguns – até que a «nave dos loucos» ceda à tempestade e sobrevenha o pânico e a lógica desgraçada do “salve-se quem puder”!

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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