Uma das obras mais significativas de Karl Raymond Popper, um dos mais notáveis filósofos do século XX, é, como se sabe, “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, que os tem – e muitos!
E, de entre eles, um dos mais encarniçados e traiçoeiros esconde-se, sob a capa da prestação de um serviço público, por detrás do que sabemos ser o desígnio essencial da própria democracia – a abertura. Sim, que só há abertura quando são diversos e efectivos os instrumentos de comunicação. Esse inimigo tem, pois, o privilégio de sê-lo de forma ínvia e paradoxal, já que é da sua natureza abrir perspectivas e propiciar o diálogo, o debate, enfim, a diversidade de opiniões. Falo, aposto que já adivinharam, da televisão, claro.
Corrijo: não da televisão em absoluto, mas desta televisão. Porque ela, ao hipotecar-se incondicionalmente ao primado do lucro, optou, regra geral, pelo princípio minimalista da popularidade: «oferecer às pessoas o que elas esperam». Repare-se, porém, que é para as multidões, para as massas, que esta televisão concebe a sua actividade – não é para a pessoa!
E, bem sabemos, com Gustave Le Bon, como «são imbecis as multidões», impulsionadas pelo único critério, rasteiro e raso, da sua «unidade mental», isto é, todos unidos pela mesma emoção – e sabemos todos muito bem onde moram as emoções: no rés-do-chão, abaixo do umbigo!
Sejamos claros: esta televisão não atrai, distrai; ela não contém, entretém; não educa, deseduca; não forma, formata; enfim, ela não entusiasma (entusiasmo: emoção de Deus, mesmo etimologicamente), deprime (depressão: a cama do diabo!).
Aliás, o próprio Popper, no seu livrinho que partilha com John Condry, “A Televisão: Um Perigo para a Democracia”, censurando asperamente o critério facilitista das televisões que consiste em adequar a sua programação ao «que as pessoas esperam», declara resolutamente: «Nessas circunstâncias, só nos resta ir para o inferno!»
Vem isto a propósito da mais recente recaída da Televisão Pública: não satisfeita com a indecorosa exibição das chamas à hora de jantar, talvez por um qualquer reflexo associado ao fatídico 11 de Setembro, dedicou, ontem, um documentário, com laivos de uma esganiçada seriedade, aos diabos que as têm ateado – sempre, e uma vez mais, invocando o desvanecedor dever de informar as pessoas que, neste nosso país da codilhice, se pelam por uma espreitadela pelo buraco da fechadura, sobre a bizarra textura dos miolos destes maníacos. E a vários deles foi inclusive concedida a glória de vomitarem para o nosso prato o lixo das suas asquerosas motivações. No meio de tudo isto, até o momento glorioso de um psiquiatra-carcereiro que, num espasmo de jactância cientista, garantiu a cura definitiva de alguns dos seus pacientes – tudo redondinho e fiável para o requerido ar de dignidade e pública utilidade. E eis como se alimenta o ciclo da loucura: deitamos-lhes a unha e fechamo-los num quarto escuro para, por contraste, podermos dormir em paz e ressalvar a nossa sanidade e, com isso, resgatarmos a nossa má consciência, simulando que os conseguimos curar e reabilitar – sim: ficam prontos para outra!
Michel de Foucault dedicou toda uma vida ao estudo da loucura, desde a Idade Clássica aos nossos dias e, curiosamente, de entre as suas muitas obras, sobressaem duas, desde logo, pela sugestividade do título: “O Poder Psiquiátrico” e “ Os Anormais”. A loucura é, segundo este autor estruturalista, gerada pela própria sociedade, organizada doentiamente à volta do omnívoro critério de uma razão de poder – um poder que se impõe ao indivíduo que, às tantas, não aguenta o controlo que sobre ele é exercido – uma pressão de explodir!
Louca é, pois, esta nossa sociedade que gera estes loucos, estes anormais – eles espelham a nossa perversa percepção de um mundo conquistador e hostil! E uma televisão que, assumindo como critério de verdade a própria voz do povo, julga exorcizar a própria loucura, isolando – e explicando (?) – a loucura de alguns, o que, em última instância, faz é confirmar a loucura de todos – a de nós todos. E, assim, se cumprirá o veredicto de Popper: acabamos por ir parar todos ao inferno!
E tudo isto coincidiu, meus amigos, com a institucionalização parlamentar do inferno de verão: no âmbito da Comissão de Agricultura, foi criado um grupo de trabalho sobre incêndios florestais – que é o que se costuma fazer quando se está mais interessado na perpetuação do problema do que na sua rápida e eficaz solução!
O problema dos fogos não é tanto uma questão de bombeiros – é sobretudo uma questão de ética e de amor pelo património nacional. Quando acorrem os bombeiros, infelizmente, já pouco ou nada há a fazer e têm, por isso, vindo a pagar com a vida essa sua heroica exposição: o mal, estando também nas chamas, está sobretudo no coração sem princípios de quem as propagou, ou, mais ainda, de quem covardemente as mandou atear.
E pergunta-se: por que razão a televisão, as televisões, se esfalfam para dar um primeiro plano das chamas que nos devoram a alma e não têm uma imagem sequer para nos mostrar da manifestação de deputados europeus em pleno Parlamento contra a Troika em Chipre, em Portugal, na Grécia, em Espanha (sim, em Espanha!) e na Irlanda?
Ou por que é que não têm uma palavra sobre o exemplar caso da Islândia, um caso pioneiro de regeneração cívica e moral a partir da dinâmica da sociedade civil?
Sabem porquê? Porque os muitos inimigos de uma verdadeira «sociedade aberta» unem-se na conjura e na perversão de manterem as portas abertas só para alguns – até que a «nave dos loucos» ceda à tempestade e sobrevenha o pânico e a lógica desgraçada do “salve-se quem puder”!
Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”