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ESTRANHA MANIA

J. Antunes de Sousa

Se o mês de Junho é o mês de Portugal, o de Agosto é sobretudo o mês de os portugueses de fora a ele regressarem – é o tradicional mês dos emigrantes. E das palavras que se seguem a última coisa que quisera é que ressaltasse o mais leve vislumbre de desconsideração por estes nossos compatriotas que ousaram demandar o desconhecido e, assim, dar mais Portugal ao mundo. Não, é sobre nós – todos- que falo, sobre este nosso estranho modo de ser.

Presenciei há dias um desses episódios que abundam neste tempo de férias e banhos: pais, com todo o ar de terem nascido nas Beiras, a falarem com os filhos pequenos num presumido e altissonante francês. E aquele casal de meia-idade a chapinhar-se nas águas cálidas de Armação de Pêra, enquanto trocavam ternurentas frases num francês de fazer corar Balzac – simplesmente comovente! Para não falar nesse estranho paradoxo de ranchos de emigrantes em festivos piqueniques, todos tomados de enlevo xenófilo de tagarelarem numa língua estrangeira (normalmente o francês que, das estranhas, é, mesmo assim, a mais parecida com a nossa), enquanto se deliciam com os sabores tipicamente portugueses da sardinha assada, do bacalhau com batatas a murro ou com o presunto de Chaves.

Creio que vale a pena uma breve reflexão à volta de tão gritante contradição nossa: infiéis à língua que nos define, mas fidelíssimos aos sabores e cheiros que nos iludem. Talvez porque sabores e cheiros tenham mais a ver com o que nos chega do que propriamente com o que se procura – não no fundo de nós, mas mais à flor da pele!

Com as palavras é diferente – elas são ponderosas, pesam que se fartam e afectam-nos no mais íntimo de nós. Os sabores são da competência das papilas gustativas, os cheiros da membrana olfativa. A estes une-os a química e ambos integram a fisiologia do prazer. A palavra, porém, é de origem vibratória e a sua energia é da jurisdição da alma. Dum lado, o gosto e o desgosto, numa espécie de reflexo neuroquímico, do outro, o acto responsável de degustar (perigoso é quando as palavras se nos gastam!) – dum lado, enfim, a métrica do prazer, do outro, a ética da felicidade.

É que a fala resgata-nos de elementarismo raso da natureza – a linguagem humaniza-nos. E, neste sentido, a língua identifica-nos e irmana-nos num horizonte comum dentro do qual nos entendemos e nos reconhecemos, num campo em que a nossa identidade se consubstancia. A língua não é, portanto, um mero instrumento operatório de comunicação: ela é a expressão do que de nós, nessa comunicação, se exprime – o tudo de nós. Somo-nos na língua que nos exprime, mais do que na língua em que nos exprimimos.

É, se calhar, por isso que os nossos emigrantes preferem falar (ou tagarelar?) em francês – assim, julgam escapar ao fado de serem o que julgam, no fundo de si, terem que ser. O famoso linguajar dos “franceses de Alcochete” traduz, no fundo, esse modo fingido de ser do português que passa a vida a fugir dela, da vida – e ilude essa fuga, dramática, sem dúvida, com o cheiro irresistível da sardinha assada, dos cominhos dos paios e salpicões ou com essa pérola da inventividade lusa – o bacalhau.

Um pormenor essencial falta, porém, acrescentar: eles falam francês para que os circunstantes (tem que haver gente à volta!), os outros que não têm outro remédio senão falar português, ouçam e avaliem a sua façanha. E também para que saibam que a sua partida aflita de há anos para longe e para o desconhecido foi compensada com este estatuto fino de cidadão do mundo que, assim, exibem – que, para eles, é cidadão do mundo sobretudo aquele que vem de fora – e o que vem de fora é que tem prestígio. Sim, porque essa é porventura a principal característica do nosso eterno fingimento: a ilusão de que os outros acreditam na nossa exibida grandeza – e, aí, justamente, o drama da nossa acalentada pequenez.

Mais uma nota curiosa: que tenha sido sintomaticamente em Armação que tenha eu presenciado um episódio mais desta nossa atávica mania – a de armar. Adoramos armar a uma grandeza que não temos, porque nos falta a grandeza de sermos realmente o que somos – que aí reside a grandeza de um povo: assumir em plenitude e incondicionalidade tudo o que é.

Um povo testemunha essa sua grandeza na constante fidelidade à palavra originária que lhe moldou esse seu singular jeito de ser. E é por isso que é perigoso este nosso desvio para a tagarelice, como perigoso é este arrivismo de aceitarmos a simplificação da nossa escrita a troco de apenas parecermos modernos e muito progressistas – na voragem da uniformização perdem-se as pegadas do nosso caminho. Tudo isto mais não é do que expressão da nossa volubilidade ôntica, da nossa dissociação.

Mas há mais: não nos viremos para os emigrantes, não. Temos cá dentro a versão institucionalizada dessa tagarelice nacional – uma certa classe de políticos encartados, profissionais da promessa, e a que Vergílio Ferreira chamou «pedreiros do futuro», os mesmos para quem tanto faz escrever reto ou recto, embora saibam que um dos significados lhes fica ao fundo da coluna vertebral, neles, porém e por sinal, bem pouco recta.

Confesso, contudo que ainda não perdi a esperança de que regressemos ao culto afectuoso da nossa língua e à fidelidade à palavra como forma de preservarmos este tão singular modo de ser homem e ser gente – orgulhosos, como nunca, da sardinha assada, do bacalhau e do cozido!

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem acordo ortográfico”

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