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GREVE ASSIM, NÃO – É GRAVE!

J. Antunes de Sousa

J. Antunes de Sousa

Apesar do ascético exercício de pacificação interior que quotidianamente venho empreendendo, a verdade é que ainda há por aí umas coisas que conseguem irritar-me – e uma delas é precisamente as constantes greves no Metro de Lisboa. E, neste dia em que ensaio estas linhas, mais uma! E, neste caso, sem qualquer dúvida: tudo parado! Porque esta empresa tem uma vantagem física imbatível e inexpugnável: fecha todas as portas de acesso e pronto, não há nada para ninguém – que é o que interessa: atingir o maior número possível de pessoas, que o importante é fazer doer e, se possível, muito. Mesmo que nada tenham a ver com o assunto aqueles a quem mais dói. Sim, que aqueles a quem deveria supostamente doer não se permitem o exótico devaneio, o estranho hábito, de viajar debaixo de terra – preferem a normal luz do dia e o humilde banco de trás de um qualquer BMW topo de gama, enquanto se entretêm a passar de soslaio os olhos pelas bizarras declarações dos representantes dos sindicatos do sector.
Vamos lá ver: lutar por melhores condições no trabalho? Sim, claro, mas, atenção, é preciso que o centro dessa luta não se confine ao círculo do nosso umbigo, círculo cuja dimensão se ficou a dever exclusivamente à mão da parteira!
Esse umbilicalismo narcisista e egótico e a que se dá eufemisticamente o nome de corporativismo, na sua flagrante curteza de vistas, pode revelar-se uma miopia social trágica: a quem pode aproveitar um empurrão mais para reduzir a escombros a economia portuguesa, já de si tão frágil? Só pode ser, claro está, àqueles que se regem pela vil lógica do vampiro: sempre à espreita para se locupletarem com o saldo do saque por entre os despojos das convulsões sociais.
Sim, meus amigos, a greve é uma inerência garantística do regime democrático, sem dúvida, mas que não se olhe para ela como um absoluto jurídico, o que seria um erro trágico: o seu exercício tem que estar necessária e assumidamente condicionado pelo contexto, pontuado, portanto, pelo aristotélico critério da equidade – que é a única via para uma verdadeira justiça.
Que, sob o seráfico pretexto da sempre desejável melhoria das condições de trabalho de um determinado grupo, não se esteja – e se calhar, está – a dar um soco na nuca de tanta gente que se revolve nas cercanias do desespero.
Há dias, numa zona chique do Porto, fui teimosamente assediado por uma rapariga, de rosto transparente de fome e de resignação, flanando no vazio da sua desgraça – e penso nela, agora, ao ver quem, invocando embora necessidades, tem o imenso poder de fazer parar um comboio durante um dia inteiro: ela, se parar, morre! Como o idoso, carcomido da espondilose e minado pela diabetes – uma greve significará o último fio de vida que se foi!
Neste nosso mundo de silêncios de morte, silêncios que denunciam, aos gritos, a desfaçatez da nossa ridente hipocrisia – do poder político e de nós todos enquanto sociedade -, só tem direitos o que mexe e estrebucha: é a voz rouca e esganiçada da ideologia e a que Vergílio Ferreira designou como a «voz do tiro». Nem mais!
Tudo, meus amigos, sinais de um tempo de fim, que é sobretudo, creio, o fim de um tempo: enquanto muitos, se calhar a maioria, se desunham e disputam as míseras migalhas que caem da mesa, uns tantos fazem birra por causa do chantilly nos doces da sobremesa!
Até que todos tenhamos que readquirir, quem sabe, o hábito dos nossos avós de roer a côdea seca da broa de oito dias…
Por José Antunes de Sousa
“escreve sem acordo ortográfico”

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