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JOSÉ LOUREIRO: O Ecrã do Fantasma

JOSÉ LOUREIRO: O Ecrã do Fantasma

José Loureiro (Mangualde, 1961) é, hoje, um artista de referência obrigatória sempre que procuramos fazer a consideração da nova arte portuguesa e da sua paisagem formal e conceptual, aberta hoje definitivamente, ao diálogo com o seu exterior. Ganhou esse reconhecimento quer pela consistência do já vasto corpo da sua obra — desenvolvida ao longo de mais de três décadas e marcada por uma forte ironia na escolha de conceitos à volta dos quais constrói as séries, sem abandonar jamais o medium da pintura — quer, também, pela notável versatilidade do trabalho. Este foge constantemente, na verdade, a cair no que seria o conforto de um estilo ou de uma qualquer fórmula apreendida e dominada para avançar, antes, e sem receios, no sentido de procurar novas experiências e possibilidades, novas tensões, surpreendentes, entre figura e fundo, escapando sempre à tentação de se socorrer de um qualquer tema unificador que o defina.

De facto, situando-se sempre ironicamente no interior dessa prática e do suporte aparentemente já esgotado da pintura — é conhecida a sua afirmação segundo a qual faz uma “pintura sobre a pintura, usando os meios da pintura” — a prática de Loureiro ensaia antes, constantemente, o que seria da ordem de uma tentativa de forçar o próprio medium a adaptar-se, se não mesmo a resistir a uma espécie de mise-à-mort a que o submete, manifestada pela constante aproximação a um limite que consiste em ser capaz de figurar a sua própria ruína como se esta fosse simultânea da sua construção.

Todo o seu trabalho opera evidenciando a capacidade de se construir — e, de facto, tem um carácter eminentemente construtivista — na observação paralela de um jogo de experimentações sucessivas que fica próximo de o deitar a perder, na ameaça de quase se desfazer. Assim, a cada momento, o artista como que procura estabelecer uma improvável dialéctica entre a presença simultânea de múltiplas camadas com origens várias, e múltiplas experiências à beira de dissolver qualquer significação e o que esse jogo de estremecimentos da forma gera é a possibilidade de fazer ruir o que resta do que foi a ideal completude do quadro, agoira e assim definitivamente arruinada.

Gera-se, deste modo, o aparecer de uma forma outra: uma espécie de revelação em que um índice de informe (que estaria contido na própria forma transitória que o artista vai elaborando) consegue dar-se a ver, introduzindo-se, desse modo, no quadro, uma sensação de movimento. Não porque o artista trabalhe o informal mas, justamente, porque acerca, em cada forma, um limite em que esta quase ameaça desfazer-se para dar lugar ao informe, sem que todavia este chegue a dissolver completamente o que era ainda forma. Processa-se, deste modo, uma espécie de constante acercamento ao desequilíbrio, sob cujas forças toda a unidade se desfaz. Na obra de Loureiro a pintura nasce, assim, ao mesmo tempo de dentro e desde fora de si mesma, ou seja, da presença de uma perpétua tensão, que o artista alimenta quanto pode, entre o que seria o seu equilíbrio externo e o seu desequilíbrio interno, operando em quem vê aquilo que se poderia designar como uma lógica da percepção.

Toda a sua pintura vive, assim, de processos próprios, e mesmo típicos, do tradicional acto de pintar — a tela, o uso do óleo, o pincel, mas também o gesto, a relação de cores, a composição, a escala — mas destituindo, em cada um deles, aquilo que seria da ordem de referenciação que a poderia tornar reconhecível no campo de uma escola, ou de um estilo próprio do tempo (sejam essas as formas actuais da figuração e da abstracção), mas procurando no seu processo formular, em vez daquelas, novas relações com outras imagens e formas, também elas provenientes de outros media: jogos de computador e vídeo, imagens ligadas a instalações que utilizam o neon, etc. Num plano muito imediato, direi que aquilo de que nesta obra se trata é, pois, de escapar à semelhança que, normalmente, vem de se procurarem referências, ora no território da representação, ora no outro, oposto, da abstracção, sustentando-se antes fora de ambas, sobre a possibilidade de uma eventual construção no plano, dificilmente sustentável, da ordem do que é uma pura percepção. Mas como se pode definir esse território da pura percepção?

Primeiramente como algo que, para se dar a compreender, prescinde de todo o apoio de ordem intelectual ou discursiva para se centrar, antes, no plano daquilo que, comentando Bacon, Deleuze designou como sendo a lógica das sensações[1]. Uma lógica perceptiva, assente, como o filósofo explicou, no percepto, mais do que no concepto ou no afecto. Por outro lado, foi Mérleau-Ponty quem, a propósito de Cézanne, referiu ser através da introdução de um elemento capaz de produzir uma desorganização interna no quadro que o pintor conseguia fazer sentir o movimento. Assim, também aqui funciona o que parece decorrer de um aparente improviso, mas que, na verdade, consiste numa obediência estrita, e jamais descuidada, a uma disciplina que é meticulosamente seguida pelo artista.

Diante de cada obra, apercebemo-nos, no imediato momento em que a olhamos, que ela obedece a essa disciplina. Por exemplo, como quando nos mostra, por um lado, uma construção geométrica estrita, que logo depois se percebe ameaçada por manchas quase informes, em que se detecta a marca de um gesto, de uma cor, de um sobressalto. Semelhante do que perturba quando, numa imagem electrónica, de TV ou computador, de repente assistimos a um estremecimento, graças ao emergir de um efeito de freeze, que parece interromper a consistência anterior da própria imagem, ameaçando a sua unidade. Mas, diante disso, perguntamo-nos: pintura de quê? Ou então, pintura para quê?

Com efeito, cada um dos seus quadros (porque a sua forma de eleição continua a ser o quadro, num sentido que se diria quase clássico) opera, sempre, sobre a possibilidade de dar a ver, mais do que uma dada forma, a desestabilização de toda a forma, através da construção de uma imagem que parece vacilar ao embater contra os anteriores limites da forma constituída. A sua é, assim, uma pintura que habita nos limites extremos do equilíbrio, quase a um passo do caos, ao mesmo tempo que se alimenta de um exemplar domínio dos seus meios e processos, parecendo que — como aqueles heróis da ficção cinematográfica ou da BD, a quem tudo à volta parece constantemente ameaçar — quase se salva num último momento e que resiste, assim mesmo, como se ainda do lado ainda da pintura pura. Desse modo se sugere uma espécie de dramatismo cómico.

Por isso o seu trabalho vai constantemente transitando entre o que seriam formas figurativas e abstractas e as mistura sem hesitar, mas, todavia, sem parecer decidir-se, desde início, por uma qualquer dessas ordens. Cita, assim, abertamente, formas de figurar típicas de outros media, ou de outras épocas — as animações em néon de Bruce Nauman, que geram jogos perceptivos através de sucessões lumínicas, os drippings de Pollock, absolutamente controlados aqui, e reinscritos numa lógica de composição, certa pintura antiga, como a de Piero di Cosimo, entre outros — para testar as possibilidades da sua permanência, ou melhor, da sua pertença, conseguida num qualquer limite, às formas do que seria ainda da ordem da pintura. Será, por vezes, para aproximar figurações do que seria um pós-humano, gerando, através dessa paradoxalidade, elementos de inovação surpreendentes e mesmo até um novo campo experimental para a construção das figuras ou, de outras vezes, simples formas que se destacam no rectângulo branco da tela, no limiar do ecrã da pintura. Porque é justamente o ecrã da pintura o que profundamente parece interessá-lo conceptualmente, e como se o que faz não fossem mais do que projecções de imagens que irão ali encontrar o seu lugar natural, o lugar do seu repouso, povoando-o. A sua é, portanto, uma pintura que reencena a pintura enquanto écrã.

Como antes referi, a seu respeito, Loureiro “é um pintor cuja obra plástica incorporou, constantemente, signos referenciáveis, no plano dos títulos – um remo, uma dobra, um cortejo – para os desregular depois nas imagens afastadas de quaisquer relações com esse referente, ou seja, para os abstractizar num processo que é, primeiramente, desconstrutivo das linguagens plásticas que utiliza. Aludindo, desse modo, a uma impossibilidade de restituir na linguagem o que é próprio da imagem. Certas questões da post-painterly abstraction, que referiu culta e subtilmente nas obras, tornam-se assim em motivos (quase à maneira de ready-mades) de uma estratégia de diagramação da pintura (Deleuze), em que o gesto, totalmente arrefecido, afastado portanto de qualquer sentido de gestualidade expressiva, se torna aos poucos em pura evocação de um gesto outrora denso e complexo, no plano das suas relações de significação de uma forma pura, para se abrir, antes, a um registo contaminado. Trata-se de desenvolver um processo, a seu modo impuro, que serve de suporte à estratégia visual que designarei, conceptualmente, como correspondente da necessidade de estabelecer um arrefecimento da percepção.

(…) Mas, o mais interessante é que isso ocorre através de um medium de que normalmente não se espera esse arrefecimento: a pintura. Sólida, porém, no seu percurso, inteligente e culta, de um saber da história e de uma capacidade de reinvenção plástica constante, a obra de Loureiro vai caminhando sobre a estreita fronteira em que a pintura se ameaça a si mesma de dissolução e de perda de significação (uma vez que já não é legitimada pelo contexto da experimentação modernista), mas em que, todavia, participa de um sentido forte da evidenciação daqueles elementos que, só pela pintura, se podem chegar a acercar.

Na verdade, trata-se de trabalhar a pintura a partir das suas próprias imagens mais fortes, sejam estas imagens de processos (imagem da abstracção, imagem do gesto, imagem do signo, imagem, até, da própria composição) por forma a gerar sucessivas distâncias que interrompam a identificação. Mas assim sem, todavia, intelectualizarem a forma final, ou a comprometerem com algo mais do que uma imagem da própria pintura. E já que de facto só a ela representam, por paradoxal que pareça o processo da sua construção.”

Recorrendo a bizarras, inesperadas figurações quase diagramáticas, feitas do que resta de figuras geométricas simples, de rectângulos, losangos, triângulos, quadrados e círculos, o artista vai desse modo elaborando discretamente novas e fulgurantes imagens, como que a sugerir uma espécie de cartazismo pós-industrial. Memória visual de outras formas, dissolução das formas normalizadas da pintura, de que conserva, todavia, o rasto.

Opondo, porém, à geometria primeira dessas mesmas figuras, a presença solta, irregular, caótica quase, de manchas e de gestos que parecem quase acidentais, inconclusas, a figurar os membros anteriores e posteriores das figuras que se movem, quais marionetes, ou caricaturas de monstros, no interior do espaço deixado em branco da tela, ensaiando sugestões de animação. Talvez análogas daquelas experimentações cinematográficas de Norman McLaren, ou das inesperadas aventuras da linha nos magníficos desenhos de Saul Steinberg, sem deixar de evocar, numa mesma sintonia empática, a solidão cómica daquelas primeiras figurações urbanas de Mark Rothko, anteriores ao seu definitivo mergulho na abstracção.

Por vezes, parecem sugerir formas reconhecíveis — uma caçarola, um micro-organismo, os olhos de um insecto, um acasalar de gafanhotos, uma borboleta, ou homens que caminham, tomados de uma urgência urbana. De outras vezes, são apenas manchas, quase abstractas, fragmentos ou momentos dos estados da matéria e da cor, que o artista deixa como se em testemunho e celebração dessa arte outrora maior que foi a da pintura, agora projectados sobre o vasto ecrã da tela. Deste modo as pinturas, convertidas ou entregues à sua nova condição de ecrãs, tornam-se nos ecrãs de um fantasma: o fantasma da pintura. Que aqui se evidencia como eco ou memória de uma arte que foi.

Essa dimensão fantasmática, em que as formas nos aparecem recortadas, justamente porque são agora aparições (e não mais representações), é precisamente o que mais nos perturba diante das obras-écrã de Loureiro. Como se o artista nos tornasse presente, e talvez até evidente, uma outra dimensão do acto pictórico, definitivamente afastado de toda a função representativa anterior, e transportado, antes, para outra forma da presença: a do aparecer, enquanto fantasma, de algo que, porventura, definitivamente se perdeu, para se restituir agora, de modo quase beckettiano, como presença de formas para nada, ou, mais geralmente, como pinturas para nada.

Esse trazer à presença do fantasma da pintura, da sua phantasmata — que já não se destina, pois, a cumprir o velho desígnio de Klee de tornar visível mas, justamente, de revelar o invisível — torna-se tanto mais inquietante quanto é ainda através da pintura que tais fantasmas se tornam presentes, visíveis. Mas aparecendo, agora, como recortes, sugestões, flashes, e já não mais como figurações (representações de figurações ou de abstracções). São projecções como que suspensas da presença puramente figural (J. F. Lyotard), isto é, irredutíveis a qualquer outra forma ou representação. E muito menos susceptíveis de serem transpostas na linguagem corrente que utilizamos para falar ou para escrever: podemos falar dos seus processos, mas não do seu acontecimento.

Trata-se, na obra de José Loureiro, de compreender que de certo modo a possibilidade da pintura como forma histórica — isto é: forma cuja continuidade relativamente a um processo cuja longa história foi triunfal, mas cujo sentido (propriamente histórico) se desvaneceu por ter chegado a um limiar de processos e de possibilidades (representação, figuração, abstracção, etc.) — aproximou, de facto, um limite que não sabemos como superar. Mas, à maneira do criador de Frankenstein, entende ser possível, agora, exercê-la a partir de um acto de reconstruir. Já não como gesto, composição, figuração, mas antes como puro acto construtivo, ou melhor, reconstrutivo, a partir dos seus múltiplos e diversos fragmentos. Fazendo assim dela uma quase criatura, evocação, phantasmata. Ou seja, lugar que é, ao mesmo tempo, o de uma evocação, o de uma memória e o de um teatro. Da evocação possível, e a bem dizer fantasmática, de uma pintura que foi (e já não pode ser), de uma memória (a da sua densa longa e riquíssima tradição) e de um teatro: aquele em que se vem articular a possibilidade da sua reconstrução por uma inesperada junção de fragmentos, de pedaços perdidos uns dos outros, ou seja, por uma espécie de artifício de colagem de elementos colhidos de diversas proveniências.

Nas figuras geométricas que nos oferecem ironicamente as suas pinturas recentes, como se tratasse de composições ou do refazer de formas sugestivas (ainda assim caricaturais) de corpos, não poderemos ver, quase inevitavelmente, memórias daquelas linhas certas, ortogonais rigorosas de Mondrian ou, até, de figurações agora definitivamente esvaziadas e náufragas do kwadrat — o quadrado negro de Malévich — reaparecendo como se descarnado sobre o ecrã branco da tela deixada quase totalmente vazia?

Ou, nas formas coloridas e abreviadas desses rectângulos de cantos arredondados, o que seriam as figurações possíveis daquelas luminosas presenças dos néons nas obras de Dan Flavin ou de Bruce Nauman? Ou nessas linhas quase gestuais, feitas de um traço solto, espalhado, corrido da tinta sobre a tela, que parecem figurar braços e pernas a gesticular, ou simplesmente aludem a figurações de elementos de pequena fauna, não reencontramos agora, como se comicamente destituídas do seu denso sentido histórico anterior, as presenças evocativas das gestualidades fortes de Hartung, de Clifford Still, de Barnett Newman, ou da tradição corrente do gestualismo e do dripping na tradição já antiga para nós do expressionismo abstracto?

A obra de José Loureiro é profundamente culta, mesmo se tudo aparece desfeito, ou desconstruído, destituído e disfarçado sob uma espécie de ironia distante, teatralizada, mascarada e gioccosa, e que nada é exatamente aquilo que à primeira vista parece.

Assim, pelas suas imagens, justamente como se num estranho teatro de aparições e fantasias gioccosi, parecem vir à boca de cena, ou ao ecrã da tela, como se em fulgurações fantasmáticas de um carnaval veneziano, figuras várias graças às quais perpassam múltiplas memórias do acto da pintura, reencenações (reenactements) da sua forma perdida. Mas agora refeitas como se por meio de uma cirurgia reconstrutiva que colhesse os elementos esparsos para os reconstruir nos termos de uma forma delirante.

Assim a sua obra vai aparecendo, entregue a uma quase libertinagem posta no acto de pintar tanto como no de pensar a pintura, já que o artista nos ensina desse modo como tudo, neste mundo, é contingente, como cada forma é precária, cada gesto apenas mais um gesto. Nada poderá ser tomado, a cada vez, como definitivo…

Bernardo Pinto de Almeida
(Março 2022)

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