MILAGRE!

J. Antunes de Sousa

J. Antunes de Sousa

Esse ó o nosso sonho último – que em nós se resolva em paz tudo aquilo que em luta nos dilacera a carne e nos atormenta a alma. É esse supremo exercício de unir o que é contrário e contraditório que a uns poucos, iluminados, exime da «quotidianidade enxovalhante» (Fernando Pessoa) e os eleva aos inefáveis cumes da intemporalidade.

Como parece acontecer com este misterioso governo para o qual, e apesar dos seus insistentes dislates, não há quem logre uma alternativa válida. Não obstante ter estado, num curto espaço de um mês, por três vezes literalmente morto, uma delas até com data do funeral marcada e tudo, eis que sempre se ergueu da sepultura onde quase todos o tinham festivamente depositado, ressurgindo dos seus próprios despojos com comovente vivacidade e desenvoltura – a ponto de se apresentar agora – sim, agora é que vai ser! – com luzidia receita milagrosa, uma espécie de elixir político, capaz de lhe garantir uma imprevista imortalidade.

Mas revejamos esta assombração que sacudiu esta nossa apagada rotina.

Cavaco, sentindo-se codilhado pelo tal fedelho que tão cruelmente o massacrara com letais doses de maldizer nas primeiras páginas daquele temível semanário que, para salientar os estragos, saía para as bancas antes de todos os demais, viu nisto a tão aguardada oportunidade para servir, bem fria, uma vingança de duas décadas. Como?

Ignorando ostensivamente a fórmula do remendo que o Coelho, mas com instinto de felino (do gato se diz que tem sete vidas!), lhe apresentara, convocou os principais partidos para uma sessão de terapia de grupo – e em que a cada um era exigido que tomasse, para começar, um intragável purgante, tanto como o era o óleo de fígado de bacalhau que minha mãe me obrigava a engolir em criança para prevenir a fraqueza do esqueleto.

E o purgante aparentemente mais duro de tomar era o da coligação: dar a mão à oposição para, ao fim de um ano, lhe entregar, com um sorriso amarelo, o tão ambicionado poder – assim, sem mais!

Não se pode dizer que não tenha sido requintado este prato frio servido em dia tórrido de verão aos irrequietos «garotos» – a ver se ganham juízo!

Acompanhemos, de relance, o raciocínio táctico dos protagonistas, sempre ditado, claro, pelo (des)interesse nacional:

Passo Coelho: fazemos de conta que engolimos o xarope das eleições antecipadas, mas tramamos os tipos, que vieram ao engodo, com o entalão dos cortes, obrigando-os a recuar.

Seguro (que devia ter desligado o telemóvel e suspendido a sua conta de e-mail). Acredito que ele gostasse de ter assinado o compromisso – que isso seria a garantia de um sonho: ser primeiro-ministro. Mas entre ganhar o país e perder o partido tremeu que nem varas verdes e caiu – ele e o seu acalentado sonho! Porque, tendo optado pela rotura do nacional compromisso, optou pelo medo – e os meus amigos sabem bem quando ganha um medroso: isso mesmo, nunca! Os seus adversários, que os tem muitos e ferozes, no seio do próprio partido, viram na tibieza e insegurança de Seguro a tão almejada oportunidade para o golpe.

Paulo Portas: inebriado por se ver finalmente tão perto do sonho de sempre, só teve que fingir-se de morto e acolher-se docemente nos braços do seu negligenciável parceiro. Bem, todos nos lembramos do mito de Narciso e o que lhe aconteceu quando contemplava, absorto, a sua imagem reflectida nas águas… O narcisismo do «puto» Portas vai traí-lo – inexoravelmente.

Cavaco: teve que meter a viola no saco e aceitar a fórmula que olimpicamente ignorara – e vai ter que levar com esta dupla assombrada, se calhar, muito mais tempo do que tinha imaginado. E faço ideia como estará furioso com Seguro que, a julgar pelos indícios, lhe terá dado razões para toda aquela pueril confiança, exibida em trajes menores, no meio das cagarras das Selvagens. E, mais doloroso que tudo: viu-se obrigado, ao fim, a substituir o frasco do purgante/óleo de fígado de bacalhau por uma especial embalagem – com lacinho e tudo – de pastéis de Belém.

Apesar de tudo, há um halo de milagre que teima em envolver este ressuscitado governo: Seguro, que bateu com a porta, mantém-se dentro, ainda que de forma ínvia e vicarial, através das improváveis pessoas de Portas e Lima com quem partilha flagrantemente posições que estes expressa e enfaticamente incluíram na moção de estratégia a apresentar num congresso à espera de melhores ventos.

É espantoso: ser um, mas comportando-se como fossem dois – dupla expressão em acto de uma mesma e única natureza. E, assim, dele parece esperar-se o milagre da unificação dos contrários – Portas/Lima e Luís (que é também Maria).

Acreditem que só um outro milagre me deixaria mais atónito: ver um dia as nossas prisões à pinha (poder-se-ia até reactivar o Limoeiro para o efeito), a abarrotar, com toda a pilantragem que nos meteu neste sarilho!

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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