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NINHO DE CUCOS

J. Antunes de Sousa

J. Antunes de Sousa

Todos ouvimos, vezes sem conta, o ditado que o nosso povo, na sua ancestral sabedoria, estabeleceu com desarmante pontaria: “mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo”. Porque a verdade é que não há pensamentos privados – e um pensamento condicionado e traído pela emoção da falsidade é como tal percebido por quem o recebe: hospitais e prisões estão cheios de mentirosos. Exactamente onde estão ou estiveram alguns políticos e onde deveriam estar bem mais!

Eles enchem a boca, e é feio falar com a boca cheia, de princípios democráticos e depois deitam às malvas alguns dos mais elementares deles – o dos direitos adquiridos e o da não-retroactividade, como acontece com o criminoso saque às pensões dos bombos do costume. E bradam, com aquele seu ar esbaforido, tais princípios porque é a coberto deles que julgam poder continuar a sua saga de triunfante impunidade face a toda a sorte de manigâncias.

Como acontece com a famosa lei da limitação (?) de mandatos autárquicos: aposto que ninguém a conhece como a lei 46/2005, 29 de Agosto! Mas todos a identificarão, de certeza, como a lei do “de” em vez do “da”.

No percurso entre a Assembleia da República e a Presidência, a proposta de lei foi parar às zelosas mãos de um «traidor» – algum assessor que, ao traduzir (traduttore traditore!) o texto que, aparentemente, visava limitar mandatos, trocou o “presidente da câmara” pelo “presidente de câmara”.

Este episódio, recentemente despoletado pela descoberta de um zeloso confrade assessor de Cavaco, é bem a paródia, trágica, é certo, mas paródia da hipocrisia que caracteriza a acção (ou actividades ilícitas?) desta classe política, a desclassificada classe das meias-tintas, que é o que são os condóminos deste condomínio bafiento do meio – o da mediocridade.

Vejamos… A lei é intencionalmente armadilhada: damos o edificante exemplo cívico de contenção e humildade ao limitar a sucessão de mandatos dos autarcas – que aos dinossauros há muito que os extinguiu o meteorito do México! E o meu povo comove-se até às lágrimas com tão franciscano desprendimento. Mas eis que, ao mesmo tempo, com a subtileza que a perfídia e a malvadez sempre inventam, se ressalva uma sibilina possibilidade: o presidente acaba a sua actuação aqui, não vá ele criar maus hábitos, mas pode recomeçar tudo ali, ao lado, como se houvesse um cordão sanitário que garantisse a imunidade ao ubíquo vírus da corrupção e como se todo o fiel séquito não coubesse na memória de um telemóvel ou de uma pen – e, agora, até na de um singelo relógio de pulso! Isto é, ao dedicado servidor da causa pública limita-se-lhe o território, ironicamente num tempo caracterizado pela dinamitação electrónica do espaço físico e das distâncias, mas perpetua-se-lhe a função: não aqui, que já te conhecem de ginjeira, mas em qualquer outro lado!

Ao presidente da câmara diz-se: “já chega”- agora tens que ter o incómodo de mudar de secretária e de motorista – e, quem sabe, de amante. Bem sabemos que é uma maçada, mas tínhamos que passar a mão pelo pêlo a este Zé Povinho, que, às tantas, ia achar de mais tanto tempo no mesmo ninho – ninho laboriosamente construído por comensais e seguidores: um ninho de cucos!

Ao assessor tradutor/traidor aconteceu apenas esta coisa bem simples e frequente: “fugiu-lhe a boca (a caneta) para a verdade”. O que a boa consciência e a sensatez recomendariam é que se impedisse, que, sob a conveniência da umbela democrática, se consagrasse a perpetuação do tacho, designação prosaica de caciquismo.

Ah!, que não! Que limitar em absoluto a três mandatos é restringir a liberdade pessoal e a capacidade cívica do cidadão: boa malha! Mas ir ao bolso dos reformados sacar o dinheiro que ao longo de anos amealharam já é “esforço patriótico”. Oh, supremo farisaísmo, oh, vendilhões do templo – enxergai-vos!

Todos os vilões, de pau na mão, da história, sobretudo os que mais nos ferem a memória colectiva, subiram ao seu trono de terror percorrendo, com comovedora convicção, os degraus de uma democracia multiusos.

E esta nossa democracia formalista, assente na geografia do medo e da manipulação, ainda vai, qualquer dia, parir um monstro!

Eu, por mim, já tomei uma medida profiláctica importante: deixei de acreditar nela!

PS: Poucas horas após ter terminado este texto, foi divulgado o “sim” do TC às candidaturas problemáticas: não retiro uma vírgula ao que escrevi. É o desfecho previsível quando se privilegia a forma em detrimento do conteúdo!

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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One comment

  1. Tudo o que rodeia esta questão dos autarcas dinossauros só confirma basicamente esta análise: o legislador trabalhou especificamente para estes casos chutando para os tribunais e não para os partidos ou políticos , a solução. Como o caciquismo local é quem alimenta os partidos, isto roda sempre à volta dos mesmos. Não existindo limitação nos seus mandatos , ou seja, 3 anos aqui, 3 anos ali e 3 anos além e assim por diante, nada os fará parar, nada os extinguirá, exceto o cansaço e a exaustão. Visível a nossa pequenez mental e a matreirice de quem nos governa?! Óbvio!. Citando Eça de Queirós subscrevo em absoluto:”Os políticos e as fraldas devem ser mudados frequentemente e pela mesma razão”. Mais palavras? Não é necessário porque o cheiro já se instalou.

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