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O ABADE DE TRANCOSO

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J. Antunes de Sousa

Toda a gente fala e barafusta de uma única coisa, do orçamento – é o discurso dos aflitos, das sobras, depois de alguns se terem locupletado com o brinde do bolo. Depois de bem aviados, eles e os seus aliados, à mesa desse grande orçamento, vêm agora, com ar comoventemente compungido, propor e defender um orçamento de míngua e de razia. Enfim, é o clássico discurso da má consciência, num ritual fátuo de exorcização dos seus próprios diabos.

Como toda a gente grita e esperneia à conta dessas contas da aflição, da aflição de um sistema decrépito, falido, mas que teima em perpetuar-se no estertor trágico da sua insanável contradição, prefiro falar de algo ainda mais preocupante e de que pouca gente fala: nós estamos a desaparecer. Nós somos cada vez menos e, não tarda, não restará ninguém desta raça, feita de muitas raças, que é a nossa. Sabe-se que qualquer povo, para sobreviver, precisa de manter um índice conjuntural de fertilidade pelo menos de 2.1; como, actualmente, nem ao 1.5 chegamos… E, não havendo já o prior de Trancoso que se entregou zelosamente à procriação de duzentos e noventa e nove filhos de cinquenta de três mulheres diferentes a ponto de ver a sua condenação a uma morte cruel comutada por D. João II em sonante louvor pelo patriótico serviço prestado à nobre causa do povoamento da Beira Alta, em vez de criar reais incentivos ao fomento da raça, encorajando os casais à procriação, que faz o nosso imperscrutável governo? Fecha escolas, sob o pretexto (e temo mesmo que seja só isso!) de que não compensa gastar o ordenado (miserável, diga-se) de uma professora só com meia dúzia de alunos, lá em Carqueja de Cima. Já dizia Vergílio Ferreira que ao professor só resta a dignidade e «Quando muito exige não morrer de fome. No fundo todo o professor sabe que a sua missão é divina. Deus não come.» (Signo Sinal, 197-198).

Mas aqui o primeiro equívoco, no suposto generoso de que seja apenas isso: o de se pensar que a socialização só se faz com muita gente – ou de que quanto mais gente melhor. Não, meus senhores, não é a quantidade de pessoas que promove o sucesso da socialização, mas sim a qualidade, a intensidade e a vibração dos afectos que circulam entre as pessoas e os valores que daí emergem e se vão integrando na personalidade de cada um. Pior que isso: sabemos bem como os ajuntamentos (o ministério adoptou o eufemístico termo de agrupamentos) são despersonalizantes e massificadores – o contrário do que supostamente se pretende. É por isso que a família é, por regra, o grupo de socialização por excelência e, não raro, em famílias numerosas mas algo problemáticas, o filho que é criado com os avós apresenta uma maior capacidade para a vida do que os demais.

E uma outra asneira muito generalizada: a de acreditar que a vida se resolve a correr, quando, na verdade, é no lento que a vida acontece: a velocidade está, quase sempre, associada à ansiedade e à precipitação – por isso é que morre tanta gente nas estradas. (Cf Ciro Marcondes Filho, Perca tempo, Paulus, São Paulo, 2005).

Educar é, como bem sabe o Senhor Ministro e as Senhoras Ministras que o antecederam, a mais sublime função, a única verdadeiramente decisiva – mas, atenção, que educar é apenas isto: ajudar alguém a encontrar a sua própria felicidade. Mas veja-se o perigo que é um sistema fundado na triste ideia de que educar é sobretudo apurar uma raça esplêndida de ganhadores (e só se ganha se houver quem perca) que, na refrega de uma competição sem tréguas, julgam triunfar num campo pejado de escombros de vencidos e marginalizados.

E é por isso que a escola lá da santa terrinha, donde se avista o infinito azul do céu, se ouvem os serenos trinados dos pintassilgos, lá onde a vida acontece ao ritmo da germinação silenciosa da natureza – essa escola não serve, ela não está acertada com a velocidade dos ponteiros do relógio da sacrossanta concorrência – esse novo ídolo das multidões vazias que se engasgam de um gozo alarve a espreitar para a «casa dos segredos» ou que se precipitam nos braços certeiros do Tony Carreira.

Isto é, meus senhores, o cortejo festivo do fim – é a marcha da nossa irreversível desertificação. Sim, Portugal está a tornar-se, aos poucos, num deserto. E, à cautela, as pessoas treinam para a sobrevivência praticando o lastimável deserto de ideias – é a secura desértica da nossa idiotice colectiva – a ponto de já quase só Jesus, o Jorge, ou Bento, o Paulo, nos poderem salvar…

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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