Home » ZZZ Autores » J.Antunes de Sousa » O CEMITÉRIO

O CEMITÉRIO

J. Antunes de Sousa

J. Antunes de Sousa

Creio bem que uma das tarefas mais divertidas – e trágicas, também – a que um hermeneuta se pode entregar é tentar decifrar uma certa classe de conceitos que o sempre inefável oráculo desta nossa moderna política se desdobra em apresentar em intérminas sessões de arte de nada dizer.

São apenas sopros de som (flatus vocis) em tudo semelhantes aos truques do prestidigitador do circo da Quarteira: o seu único objectivo e, mesmo assim, nem sempre conseguido, é iludir o povão. São pretensos conceitos que carregam em si o veneno da própria contradição, pois nada, por sua mediação, é possível realmente conceber: eles são vãos, vazios e, na melhor das hipóteses, apontam justamente para o contrário do que a sua forma etimológica pareceria indicar.

Neste sentido, a conversa fiada dos políticos irmana-se, na sua inconsistência, ao psitacismo do papagaio, que é, como se sabe, esse seu particular jeito para reproduzir sons humanos à toa – é, enfim, mais do domínio da pura tagarelice! Que é isto o que acontece às palavras quando as gastamos com a sua repetição sem nexo e pelo uso indevido que delas fazemos.

E um desses mágicos conceitos é o de convergência. Primeiro foi na União Europeia: convergência nominal e convergência real, num rodopio de entontecer. Até que, depois de tantos jogos florais, sobreveio o cansaço e até o anacronismo – essas expressões já não diziam nada em que as pessoas acreditassem. Afinal, este conceito, agitado até à obsessão, só queria dizer o impossível: todos os países-membros a convergir, rápido e em força, para uma situação em que todos fossem iguais, mas com uma imposição que não lembraria ao diabo: todos à mesma velocidade, apesar de serem flagrantemente distintas as locomotivas – de alta velocidade, algumas, ainda a carvão, outras. Resultado: uma divergência cada vez maior!

Agora é a comissão administrativa deste Protectorado a que ainda se vai chamando Portugal que resolve acenar também com a mágica convergência – que é preciso alinhar as pensões por um critério de justiça relativa!

Mais uma vez, porém, a mesma contradição: converge-se divergindo. Sim: aumenta-se o número dos que se igualam na pobreza para diminuir os que se igualam numa riqueza cada vez maior, ou seja, a cada vez mais igualmente pobres corresponde um número cada vez menor de muito mais ricos. O empobrecimento geral salienta o afrontoso enriquecimento de alguns. E um país cada vez mais igual na pobreza torna-se, paradoxalmente, um país insuportavelmente desigual – mais do que qualquer outro na UE, como convém, aliás, à nossa congénita mania de querer botar figura mesmo que seja pelas piores razões!

A pretexto de uma solidariedade, invocada na retórica oficial, mas renegada pela acção, o que se logra é um país tragicamente dilacerado, um país cada vez mais perigosamente amotinado no desfiladeiro da sua angústia. E, num país assim, em que as elites têm um inquietante histórico de frouxidão e claudicação – sempre prontas para o beijo da delação e entrega – é certamente o povo que, uma vez mais, vai ter que meter isto na ordem – e os reformados e pensionistas terão que interromper o jogo da bisca e da sueca e arregaçar de novo as mangas, que ainda há muito trabalho pela frente!

Nós que fomos tão lestos a verter conceitos de pragmatismo social no tristemente famoso “Protocolo de Bolonha” somos agora relapsos em levar à prática o critério de Jeremy Bentham, o princípio da maior felicidade do maior número. Sim, que numa convergência económico-social, o critério é este: o melhor para o maior número possivel de pessoas – eis o desígnio do Bem Comum. E que faz este nosso bizarro (des)governo? O mínimo para o maior número possível – assim toda a minha gente com a corda na garganta! Mas não será assim que nos tirarão o pio!

Sacar (temos que usar de propriedade nas palavras) cem euros a quem recebe mil, montante, atenção, que resulta do dinheiro que ele, em devido tempo, descontou, é, sem dúvida, uma facada, mas surripiar, em jeito de cortesia trocista, mil a quem o Estado oferece vários milhares é apenas uma pancadinha nas costas – de conivência e cumplicidade!

Custa, mas temos que ser claros: a metáfora da convergência à portuguesa é o cemitério – todos convergindo no silêncio da morte. E é mesmo de morte este silêncio. Mas que se desiludam os “vampiros”: este silêncio é também de gritos!

Em vez de convergirmos no sentido do alto, da dignidade, como é do nosso destino, eis que nos querem obrigar a convergir para o baixio, para o buraco: querem meter-nos no poço – e os que nos poderiam tirar de lá eis que escondem a corda e nos viram as costas.

Somos, pela nossa própria natureza, chamados a uma vida de príncipes, mas obrigam-nos – e nós aceitamos! – a uma arrastada vida de sapo. Portugal está convertido num imenso sapal e do qual aquele outro de Castro Marim é apenas uma encantadora miniatura!

Eis, meus amigos, a obra de engenharia deste governo que, como sabemos, é muito mais dado à tesoura e ao bisturi do que à enxada e ao arado: habituar-nos ao pouco, muito pouco, mas a ponto de sentirmos que isso é tudo a que temos direito. A pobreza não como tenda de campismo em exercícios de sobrevivência, mas como habitação permanente. A esperança desta gente que nos desgoverna é, pois, que nos instalemos mentalmente na pobreza e que a ela nos habituemos sem soltar um ai.

Fica-nos um dever indeclinável: mostrar-lhes quanto estão enganados!

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

Partilhe:

One comment

  1. João Pedro Soares

    Perfeito! Infelizmente, mas perfeito! Os meus parabéns pela garra nas palavras!

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

*

*

Comment moderation is enabled. Your comment may take some time to appear.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.