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O ESTERTOR DAS SALAS DE CINEMA

Fechar uma sala de cinema é como fechar um jardim. É como encerrar uma creche, como matar um sonho ou destruir uma paixão.

Ernani Balsa

Ernani Balsa

Nos últimos meses, depois do encerramento do Cinema Londres, concretizou-se o fim anunciado das três salas do King, tudo na zona de Alvalade, em Lisboa. A razão tem sempre a ver com a fraca afluência do público, que é uma coisa muito difícil de combater, mas outras razões adjacentes e a montante haverá, que têm a ver com um certo tipo de cultura do descartável e do imediato. Duma certa atitude possidónia de encarar a cultura confundindo-a com a mais reles das diversões.

Singularmente todas estas salas passavam cinema de qualidade, com especial relevo para as salas do King, com uma programação cuidada e com grande preocupação de verdadeiro serviço público de divulgação do novo cinema europeu e das mais diversas origens, sem privilegiar exclusivamente as grandes e mediáticas produções americanas, mas não descurando, contudo o cinema de autor e alternativo da produção mais hollywoodesca. Ali se podiam ver filmes europeus, aliás quase todos eles apoiados por um organismo europeu que apoia o cinema do velho continente, mas também chineses, japoneses, das mais diversas origens asiáticas, do médio-oriente ou América latina e também, como seria natural, portugueses. A sua programação, divulgada com cuidado e especial atenção, proporcionava a um público fiel, momentos de cinema inolvidáveis, aquele prazer indescritível de nos sentarmos numa sala escura e abandonarmo-nos à magia dos enredos, à excelência das interpretações e ao deleite das imagens, da fotografia, das bandas sonoras, a todo um conjunto de elementos que constituem uma obra acabada e feita com propósitos de nos contar uma história, de fazer-nos pensar, de nos contaminar com dramas ou comédias, de nos permitir tirarmos as mais variadas leituras que estão sempre contidas em qualquer obra de autor. E de nos divertir também, porque não!?…

Tudo isto fazia parte de um ritual que durante muitos anos formou milhares de cinéfilos ou simples espectadores que gostavam de ver cinema em salas concebidas para o efeito, assim como o teatro se faz nas suas salas e os grandes concertos musicais também. O conceito de espectáculo, por muito que se queira reinventá-lo, não acontece nunca nas nossas casas. Nas nossas casas podemos também sentir sensações, claro está, dependendo até das piores ou melhores condições de som ou imagem, mas não é possível recrearmos nos nossos lares a mística do cinema nos sítios próprios.

Nos últimos dias, soube-se também que a antiga sala do Cinema Londres, uma das melhores e mais carismáticas salas de Lisboa, depois de já ter fechado há uns meses atrás e ter sido já despojada de todo o seu recheio, incluindo as suas famosas poltronas reclináveis, que foram vendidas em hasta pública para realizar capital para pagamento de dívidas da sociedade detentora da sala, estava a ser total ou parcialmente demolida para acolher mais uma loja chinesa!… Não é que o comércio chinês me repugne, pese embora a fraca qualidade dos seus produtos, mas não deixa de ser um fenómeno empresarial que me enche a mim e muitas outras pessoas de dúvidas e interrogações. Como é possível que, com uma oferta baseada em produtos de qualidade tão questionável, salvo raras excepções e preços tão competitivos, exista espaço no mercado nacional para tantas e tantas lojas, quase todas iguais, sem quaisquer preocupações estéticas ou de conforto para os clientes? Segundo suponho, a maioria das lojas pertencerão a sociedades portuguesas de capital chinês e não há espaço vago ou a vagar que lhes resista, independentemente da área ou da localização. Uma loja como o espaço deixado pelo Cinema Roma, que englobava um snack-bar e julgo que um bar, na Avenida de Roma, junto à Praça de Londres, será talvez dos mais caros espaços por metro quadrado, de tal modo que pessoas, comerciante  e outras entidades da zona, terão mostrado interesse em recuperar o espaço para qualquer solução na área da cultura e do lazer, mas não terão reunido capital suficiente para lançar mãos à obra. Uma loja chinesa naquele espaço será sempre para mim uma espinha cravada na minha condição de Lisboeta e amante de cinema. Como é possível?…

Mais uns anitos e estaremos privados de qualquer espaço com o mínimo de qualidade para ver cinema de qualidade… Dir-me-ão que existem óptimas salas nos complexos cinematográficos dos Centros Comerciais… Não deixa de ser interessante que a indústria do lazer proporciona cada vez mais equipamentos audiovisuais de grande qualidade para se recriar o espaço cinematográfico nas nossas casas. Por outro lado, numa avidez incompreensível de agradar a todos, em todos os locais e em todos os aspectos, misturam-se alhos com bugalhos, privacidade com multidão e espaço público com espaço doméstico e assim aparecem as super salas de cinema dos Centros Comerciais… Acontece que eu não misturo cinema ou cultura com devoradores de pipocas. A cultura dos mastigadores de pipocas e sorvedores de Coca-Cola não faz parte do meu universo cultural, nem mesmo de lazer ou diversão. Há mínimos!…

Por: Ernani Balsa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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