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O RASTILHO DA INFÂMIA

Nunca como nestes tempos em brasa foi tão fácil e impune atear fogo ao que resta deste flagelado país.

J. Antunes de Sousa

J. Antunes de Sousa

Com os níveis de autoestima a queimar o vermelho, com o cutelo do algoz sobre a cabeça de tantos e tantos portugueses… sempre pronto a cortar, com tantos súbditos educados no respeitinho pelo Estado e, agora, ludibriados nas suas legítimas expectativas por esse mesmo Estado, sempre pronto a morder e a extorquir, a nossa gente caiu num torpor mole e apagado – sem a centelha que lhe alimente a esperança.

O país caiu num rumor lamentoso e, perante o estertor de uma política sem alma, desatou a chicotear-se sem piedade – o mesmo princípio da anorexia: a jovem como não gosta do que o espelho lhe mostra, castiga-se até, mirrada de tanta fome, se sumir pelas frestas da vida.

E um dos modos mais apreciados de autoflagelação é essa absurda e avassaladora praga de incêndios que varre o país, quase todos eles activados por mão criminosa – a mando ou por mania. Em qualquer caso, parece claro que há por aí um pelotão de pirómanos à solta, todos, e a soldo, alguns, de inconfessáveis interesses. E como custa admitir que haja quem troque um interessezito pelo interesse nacional de preservar verdejante o pulmão da nossa terra!

Em tempo anómico, sem rei nem roque, sem norte nem tino, qualquer negociata ou qualquer vingançazinha dita a sua lei. E depois, claro, há sempre uns tontos que se babam de um prazer selvagem com as labaredas por eles ateadas a serem exibidas à hora do jantar na televisão: «aquilo fui eu que provoquei!». E ainda se riem da Polícia que ameaça agarrá-los – e mesmo que os agarre sabem bem que em breve estarão de novo à solta para nova façanha.

Assentemos numa verdade antropológica e psicossociologicamente irrefutável: o ser humano é um ser eminentemente mimético – ele tende a copiar comportamentos e a reproduzi-los. E fá-lo tanto mais rapidamente quanto mais impressivo e credível for o meio de informação e exibição. Eis o drama, pois: A televisão não previne, estimula e ateia! Como no Big Brother: promove heróis de pacotilha, rápidos e descartáveis, que não se aguentam nas canetas nem na sua própria pele e, ao cabo de um mês, ameaçam lançar-se da Ponte 25 de Abril.

Antes, não estava na cabeça das pessoas que o país pudesse ser assim devastado – e não era mesmo. Depois, a expectativa social foi incorporando, como algo cada vez mais natural, a inevitabilidade dos fogos florestais. A semântica que foi integrando o compêndio da governação, dá desse facto sugestivo sinal, com expressões do tipo “época oficial de incêndios” e outras. Significa que toda a gente, com governo à cabeça, a partir dos primeiros apertos do calor, se põe à coca do rastilho, esperançadamente à espera dos prometidos fogos – e, já se sabe, quem espera sempre alcança. E se toda a gente está mesmo à espera dos incêndios, eles cumprem zelosamente o seu dever e aparecem – mesmo que seja gente a fazê-los aparecer!

A prevenção, como acontece com as epidemias da gripe e contrariamente ao que vulgarmente se crê, é, não raro, mais parte do problema do que da solução: a corrida assustada às farmácias é, no fundo, um convite ao senhor vírus para que entre.

É claro que não é o remédio que está mal, mas a atitude fatalista perante a ameaça. Prevenir é investir na efectiva utilidade humana da floresta, reconciliando-a com o desígnio de uma vida ecologicamente equilibrada: e de certeza que os fogos darão menos que falar!

O fogo não se apaga com fogo – o fogo da ganância dos que enchem os bolsos à custa das chamas, do fogo do exibicionismo dos patetas que se pelam por ver na televisão o resultado macabro da sua pusilanimidade, do fogo, enfim, da guerra suja das audiências entre operadores de televisão, que não hesitam em colocar em risco a vida do repórter a troco das imagens mais reais e mais chocantes.

Meus amigos, a partir do momento em que apagar fogos se tornou num negócio chorudo passou a ser uma mina para os vilões ateá-los. E eis-nos no ciclo apocalíptico da nossa desertificação como terra e como povo.

A questão é apenas esta: estará o poder político disposto a arrostar o problema de frente? Que sim? Então, aí vai:

1. Prevenir sem alarmar: aprontem-se os meios, limpem-se as matas, encoraje-se a pequena propriedade, abram-se caminhos, mas sem espectáculo nem falatório. A conversa só serve para incendiar.

2. Acabe-se com o aluguer dos meios aéreos: só com meios próprios e públicos a suspeita de lucro a todo o custo se desvanecerá. E criem-se parques de madeira ardida cuja comercialização fique sob controlo do ministério da agricultura…ou do ambiente.

3. Ponha-se cobro ao espectáculo obsceno e perigoso das televisões empenhadas, precisamente à hora de jantar, em queimar o que resta da esperança na alma dos portugueses: mostrar a floresta em chamas, repito, não ajuda a prevenir – só estimula e contagia. Além de que se não come apenas o que está no prato, mas também o que, pelos olhos, nos entra no coração. Ainda há dias um documentário televisivo ensinava detalhadamente a maneira de fazer “skimming”, isto é, clonagem, de cartões de crédito!

4. Que qualquer área sinistrada seja declarada zona militar, ou seja, de acesso absolutamente restrito – e ver-se-á como tudo isto amaina.

A menos que tenhamos todos desistido de continuar Portugal!

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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