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O VÓRTICE POLAR

J.Antunes de Sousa

J.Antunes de Sousa

Não é bem a morte solitária, ultimamente tão publicitada, que causa impressão nestes casos – afinal morrer é o acto supremamente solitário. O que choca, ou que deveria chocar, é que, neste nosso tempo das redes sociais (do facebook e do twitter), neste tempo que se auto-intitula o tempo da comunicação por excelência, haja tanta gente e cada vez mais, dramaticamente mais, a viver na mais gélida e tumular solidão.

Não é, pois, o estar só na morte que nos interpela – que aí estaremos inexoravelmente sós todos, mas que a Vida, essa sim, eminentemente comunhão e partilha, haja tanta gente a vivê-la mergulhada num pétreo silêncio, ou, melhor, num criminoso silenciamento que esta sociedade, ululante e inadvertida, lhe impõe.
As muralhas de desumanidade silenciosa que desenham uma cintura de ausência e de morte à volta das nossas grandes cidades são, em certa medida, os monumentos modernos ao nosso insistente e trágico olvido do ser.

Sob este nosso olhar, desabituado de ver, erguem-se montanhas cinzentas de cimento armado cuja característica fundamental é a sua deformante uniformidade de formas – janelas à esquadria por onde espreitam olhares vazios, sem amanhã.

Homens e mulheres, tantos, sobreviventes, pouco mais que vegetativos, de uma vida que, qual medonha refrega, os reduziu a esquálidos escombros do humano – tantas casas sem uma fresta de sol e em que se arrastam sombras bisonhas de pessoas que esta cruel sociedade trucidou sem dó nem piedade. Sim, há tanta gente a morrer antes, muito antes mesmo, de que um qualquer delegado sanitário lhes declare a morte oficial! Este, sim, o verdadeiro vórtice polar!

Como aquela senhora da Rinchoa – ela já morrera antes, se calhar, muito antes, de ter deixado de pagar o imposto municipal. Por isso é que tão pouca gente deu por falta dela. Há muito que ela deixara de constar na lista de «activos» dos serviços públicos.

E o facto de se ter literalmente evaporado, secado, sem exalar mau cheiro, é bem a metáfora de uma existência sem rasto – ela sumiu-se sem incomodar ninguém, até porque ninguém está para se incomodar, como demonstra a suprema frieza e crueldade deste governo que se empenha a fazer umas irrisórias cócegas aos mais ricos com a mesma desenvoltura técnica com que se entretém a aplicar um soco na nuca dos mais pobres e desvalidos, para a seguir os esfolar, como se faz aos coelhos. E eis a suprema ironia –  que seja Coelho o esfolador! Sim, sob o imaculado pretexto da solidariedade, sacrificam-se aqueles que dela mais necessitados estão.

E, nesta indiferença perante o outro que nos deveria interpelar, é, afinal, a própria sociedade que, tomada de um estranho torpor colectivo, caminha festivamente para o precipício – cada vez mais iminente.

Infelizmente nem os abalos causados pela actual crise financeira e social têm sido suficientes para promover um ápice de lucidez no coração das actuais lideranças, cá dentro e lá fora, que teimam em persistir na lógica desumanizante deste paradigma – o da esfola.

O mais certo é que acabem por vir do ventre do próprio planeta as trágicas razões que, em sangue, nos convertam ao bom caminho, no suposto auspicioso de que possa haver ainda caminho. E de que são indícios inquietantes as recentes investidas devastadoras do mar e do que mais adiante se verá, porque «Deus perdoa sempre, os homens às vezes, mas a Natureza nunca».
É, sem dúvida, crucial esta «hora nocturna» que nos coube viver.

E o vórtice que se alevantou da Tunísia, varreu o Egipto e, em alterosa galopada, está literalmente a dizimar a Síria, não me admiraria que fosse apenas o anúncio do vendaval planetário que aí vem.

Há, de facto, tantos avisos a gritarem para que paremos para tomar atenção àquilo que nos é realmente essencial – que é de atenção, mais que nada, este nosso trágico défice.
Temo, porém, que seja tarde de mais quando finalmente nos dispusermos a reparar – porque já não haverá então reparação possível.

Há, em qualquer caso, uma luz de esperança que a história da própria vida no planeta nos sugere: a todas as grandes destruições sobreveio sempre um estádio novo e superior na escala da vida e da consciência.

E aqui justamente o nosso drama: que só ganhemos juízo depois de racharmos a cabeça!

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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