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Os gatos não têm vertigens…

O tempo é talvez a maior riqueza que podemos ter. Pelo menos, no meu caso, isso é uma quase certeza. A seguir, a amizade, porque sem tempo, esta não pode nascer, crescer e manter-se. A amizade é sem dúvida mais importante que o amor, na minha perspectiva, porque muito mais forte e perene. O amor vive de muitas mais cedências e imposições, torna-se, em muitos casos, egoísta e mesmo pérfido porque exige mais do que muitas vezes pode dar. A amizade perdura mais e estabelece laços mais íntegros e desinteressados, porque assenta em compromissos que respeitam a liberdade e a individualidade de cada um, sem contractos impositores e castradores.

Mas acima de tudo isto, o tempo concede-nos uma dimensão, sem a qual nada pode acontecer. É por isso mais importante e mais premente para podermos estabelecer todas as outras relações humanas que queiramos experimentar. Nesta conformidade, o tempo requer que o seu uso seja rentabilizado e aproveitado para aquilo que é realmente importante e isso leva-me a, cada vez mais, considerar uma perda quase inútil de recursos, usar essa riqueza com coisas que não compensam. Não há dúvida que as palavras são também urgentes e ajudam-nos a organizar o nosso pensamento e a transmitir aos outros desafios e alertas que podem ser interessantes, mas só o são se levarem as pessoas a tomar atitudes e mais ainda, acções concretas que ajudem a uma mudança efectiva da nossa vida colectiva.

Outra forma de contribuir para uma maior consciência das pessoas, para a necessidade imperiosa e inadiável de tentarmos construir um mundo melhor, é pela arte e cultura em geral. As várias linguagens da arte, como expressão não apenas lúdica e estética das nossas ideias, mas também com exemplos e narrativas de situações reais, mesmo que ficcionadas, são uma via tanto ou mais eficaz para nos levar a reflectir e assim apurarmos a nossa conduta e a nossa maneira de projectarmos melhores dias e consequentemente melhores tempos para o tempo que ainda temos para viver.

Veio-me tudo isto à memória a propósito de um filme português que ontem fui ver, “Os gatos não têm vertigens”, de António-Pedro Vasconcelos. A história, sublimemente contada e trabalhada, com notável interpretação, nos principais papéis, de Maria do Céu Guerra (Rosa) e do jovem João Jesus (Tó), mas também de Nicolau Breyner (Joaquim) que, embora com uma curta aparição física, permanece sempre presente ao longo do filme, é pois uma história de amizade e de afecto no tempo de cada um deles, que são tempos diferentes mas que se entrecruzam na dimensão humana da vida. O tempo de Rosa é o tempo que ela ainda tem para viver, o tempo que lhe sobrou depois da brusca morte de Joaquim e o tempo de Tó é o tempo que ele nunca viveu ainda, perdido que andou em desencontros familiares e encontros fortuitos e frágeis, comuns a tantos jovens que se refugiam num isolamento tribal e marginal, numa fuga constante da realidade que eles não entendem.

Esta, talvez quase improvável, relação de amizade entre uma sexagenária inquieta e irreverente e um jovem desestruturado mas sonhador, qual gato perdido na cidade, faz-nos pensar que o entendimento entre as pessoas é possível, desde que se estabeleçam laços afectivos e humanistas, longe da ameaça dos paradigmas considerados como quase normais, que assentam numa busca constante e cega do sucesso, da vitória sobre o nosso semelhante, como se a vida fosse uma competição sem fim, onde apenas os vencedores têm direito a reclamar a sua parcela de felicidade. Uma felicidade quantas vezes triste, depressiva e sem o brilho de um sorriso, de uma gargalhada, de uma irreverência cúmplice e inofensiva. Sem o prazer de se poder repousar o olhar nos telhados da cidade e acreditar-se que se está perante a visão mais maravilhosa que a vida nos proporcionou. Sem receio de nos abeirarmos da vertigem de um terraço que se debruça sobre o Tejo e não sentirmos essa tontura da instabilidade do ser… Mas esta amizade é também a resposta à insana cultura do confronto entre gerações, receita ultimamente tão usada pelos gurus do egoísmo e da intolerância entre as pessoas…

Perder tempo com o acessório em vez de se investir na felicidade possível pode fazer-nos pensar que desdenhamos a felicidade em prol do politicamente correcto ou das convicções que fomos construindo ao longo do nosso crescimento e da nossa politização, mas por vezes faz mais sentido investirmos, no imediato, naquilo que os nossos sentimentos nos ditam e isso não faz de nós nem desistentes nem vencidos, torna-nos mais humanos, mas também mais preparados para podermos combater com mais consciência e melhores argumentos as injustiças contra as quais nos inquietamos e revoltamos. O facto de nos sentirmos mais sensíveis e ligados por afectos a quem nos traz paz e serenidade, fortalece-nos e dá-nos novas forças e mais engenho para desmascararmos os traficantes da política suja e do poder corrompido. Nada afecta mais os corruptos e os incompetentes do que se confrontarem com o nosso bem-estar interior, com a nossa leveza do ser e com a magia das amizades a bailarem-nos nos sorrisos e nos olhos, sabendo eles que temos perfeita consciência dos seus crimes e malfeitorias e que mesmo a sorrir não baixamos os braços até os desmascararmos em cada dia que passa.

É por tudo isto que tempos alternados de palavras e de afectos se podem complementar e levar-nos a uma tomada de consciência mais efectiva, a uma vontade mais incontrolável de mudar o imutável. Falava-me há dias um amigo na urgência de se caminhar para a desobediência civil, face à delinquência do poder, um caminho consequente depois de se esgotarem as palavras. Não me parece a solução ideal, mas talvez seja a única disponível para alterar significativamente o descalabro do caos instalado pelo poder na vida das pessoas, depois de tantas palavras ditas e ignoradas. Restar-nos-á o afecto para a reconstrução duma sociedade solidária e equilibrada. O tempo continuará a suportar os nossos sonhos e dar-nos-á espaço para recuperarmos da ditadura da teimosia. O tempo será sempre a nossa maior riqueza se o soubermos aproveitar para o bem de todos…

Ernani Balsa
“escreve sem acordo ortográfico”

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