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OS SONHOS SÃO SEMPRE COLORIDOS

Ernani Balsa

Todas as semanas chego aqui, a esta mesma página em branco e interrogo-me. É certo que muitas vezes já tenho em mente algo sobre o que escrever. Falta-me apenas a forma, o tom e encontrados esses condimentos da escrita, o texto flui naturalmente e encontro até novas abordagens que o podem enriquecer. Mas o que fazer quando apenas se quer escrever sobre o nada? Escrever como meio de reflexão? Como catarse de qualquer coisa ou simplesmente, de coisa nenhuma?

O estigma da página em branco é, mais do que um desafio, por vezes, uma angústia, ou então, o desaguar dum impulso incontrolável que se sublima num enorme alívio. Há mesmo quem diga que o também possível terror deste espaço em branco, como que um abismo de ausência que tende a nos intimidar, só se pode resolver indo em frente, sem pensar muito naquilo que vão ser as primeiras letras, as primeiras palavras, a primeira frase, a primeira ideia ainda por construir…

Como dizia Saramago, e para quem, como eu e muitos outros, hoje em dia substituíram o doce e sensual deslizar do aparo, da esfera ou da ponta do instrumento de escrita, pelo ritmo, também ele inspirador do matraquear dum teclado, o que o chama à escrita, é o incansável e hipnótico piscar do cursor num écran de computador. Há portanto imensas maneiras de ultrapassar esta angústia do vazio e da brancura duma folha sem nada escrito…

Às vezes, basta um pequeno pormenor para nos arrancar deste estado inerte dos dedos flutuando, ainda sem o derradeiro sinal para atacarmos a construção da escrita por cima do teclado. Uma pequena ideia, um acaso, um episódio, na altura sem importância, mas que a maravilha do pensamento nos faz torná-lo num tema que de repente toma conta de nós. No meu caso, tanto posso ter uma ideia já vagamente construída, como partir do vazio absoluto.

Esta urgência de escrever com data marcada, ter este desenho de palavras pronto a cumprir um compromisso com quem publica e quem lê, empurra-me inexoravelmente para o confronto com o tal abismo de que falava, sendo portanto inadiável tomar a atitude que se impõe… Sinto desfilar dentro de mim uma miríade de temas que poderia aqui abordar. Hoje, por exemplo, poderia abordar a “tragédia” do chumbo, pelo Tribunal Constitucional, da lei da convergência das pensões. Muito provavelmente iria somar o meu texto a um inquantificável número de artigos sobre o mesmo tema, embora de teores e orientações diversas, mas esse tema começa já a ser recorrente, de tal forma o governo tem insistido nesta política de confronto recursivo com princípios essenciais da nossa Constituição e do seu Tribunal.

Por outro lado, se já aqui dei sinais de não saber concretamente falar sobre o natal, porque dúvidas e incertezas me bloqueiam uma forma sustentada de raciocinar sobre algo irracional, também a política, fundo inesgotável de inspiração, vem ganhando foros de tema de mau gosto, dada a vulgaridade e mesmo baixeza da sua forma de exercício e mais ainda dos seus executores, que cada vez menos merecem qualquer atenção ou enfoque credível e sério. A classe política do tão famigerado arco da governação, forma eufemística de apelidar aqueles cujo compadrio, propensão a conluios, falta de ética e abundância de impudência se disponibilizam a alternar o poder, independentemente de cores partidárias diferentes, salvaguardando assim a sua eternização na governação e satisfazendo a cobiça e sede de poder deles todos, a essa classe política, cada vez menos reconheço uma ribalta que não se coaduna com o estado progressivamente deplorável a que este país tem chegado, por seu esforço e vontade.

Acho, portanto, que me resta falar de nada, que é também uma maneira consequente de assinalar o vazio de progresso e esperança de futuro de que podemos ter consciência neste aproximar de fim de ano. O nada, esse anátema da dissertação, da dialéctica da coisa nenhuma, do discurso do absurdo, pode estar à beira de poder abandonar essa carga negativa e ascender a tema quase único de discussão, porque tudo é cada vez mais vazio. Vazio de valores, vazio de perspectivas, vazio de oportunidades, vazio de ética, vazio de competências, vazio de pudor e vazio até de humanidade e sentido de respeito entre pares. A vacuidade está a ganhar terreno sobre o valor e conteúdo do ser humano. A despojá-lo desses atributos em benefício de uma nova identidade amorfa e inflexível, tecnocrata e isenta de sentimentos e emoções.

Eis porque falar da ausência ou inexistência daquilo que deveria ser um tema, pode ser um sofisma para disfarçar uma inspiração, também ela ausente, mas poderá também não deixar de ser um desafio para nos debruçarmos sobre a ascendência do vazio ao poder. O vazio de princípios e valores levar-nos-á inexoravelmente a um abismo na humanidade, um buraco negro apenas colorido pela ausência da própria cor… e sem cor, não existe profundidade ou dimensão. Entre o negro e o branco, únicas cores possíveis para o vazio, existe apenas o desconhecido que não tem nem dimensão nem volume ou conteúdo. É coisa nenhuma à procura de alguma coisa…

Por isso, escrever sobre coisa nenhuma não é assim tanto um exercício sobre o nada, mas antes o mergulhar numa procura constante que nunca se consome nem termina. É escrever sobre o nosso eterno desconhecimento, com o conhecimento que em cada momento temos das coisas, das pessoas e do mundo. Aprofundar o nosso conhecimento sobre o vazio, o negro do desconhecimento e o infinito espaço da brancura, poder-nos-á levar ao encontro das soluções e das cores para preenchermos o cinzentismo deste mundo que os governantes de hoje em dia apontam como futuro, porque o futuro nunca poderá ser cinzento. Os sonhos são sempre coloridos…

Por: Ernani Balsa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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