Há dias uma senhora que me não via há algum tempo disparou com a certeza de um arqueiro olímpico: “o senhor está com óptimo aspecto, há-de dizer-me qual o segredo”.
O que impressiona é a convicção da criatura: ela está absolutamente segura de que me está a fazer um grande elogio. Mas, bem vistas as coisas, não é isso elogio por aí além. Eu pelo menos não fiquei nada entusiasmado. Ela não fez mais do que exprimir a sua surpresa por, afinal, o meu aspecto não corresponder ao velho que ela me considera já e que julgava que eu deveria ser: tenho, segundo ela, bom aspecto, apesar de ser suposto não o ter. Ora bolas! É que a um jovem de vinte anos não se lhe diz uma coisa dessas – ele aparenta a idade que tem e pronto.
Este episódio, que raramente traduz mais que uma mera gentileza de circunstância, revela o quanto fazemos depender do tempo tudo quanto somos. As rugas são, neste sentido, as marcas daquilo que o tempo nos fez ou, talvez mais finamente, as marcas do que fizemos com o tempo. Em vez de fazermo-nos no tempo e a tempo, passamos o tempo a consumir-nos nele – e é por isso que envelhecemos e nos sumimos: “estou ralada, vejo o tempo a passar e não faço nada”. Essa ideia peregrina de que é preciso ocupar o tempo a fazer muitas coisas é a expressão da fraca ideia que temos acerca de nós próprios: o tempo é condição existencial, mas não é o absoluto da existência. A ideia taylorista de um balanço inventarial da quantidade de coisas que fizemos durante a vida é um equívoco trágico – um de entre muitos da nossa modernidade do stress e do prosac. É no instante, e só então, que me posso ser plenamente e não na quantidade do muito que possa ter. Por isso é que há quem não goste do Natal – que é um tempo de ser, um tempo de verdade. Preferem a passagem de ano – um tempo de vertigem, um tempo paroxístico e de ilusão. Afinal nada passa nessa suposta passagem, a não ser aquilo que nós próprios inventámos e decretámos que passasse – a data. E a data é só o modo de assinalar o como passam por nós as coisas – a data é, quanto muito, um sinal de trânsito. Mas não é, como se sabe, o sinal que conduz o viajante ao seu destino.
Há dias ouvi, num programa radiofónico, uns comentadores a fazerem, sempre com aquele tom categórico de arúspices iluminados, as habituais previsões para o ano 2014 – que não vai haver melhorias, que dificilmente nos livraremos de mais austeridade, de um enigmático “programa cautelar”,etc. E isto apesar de um ilusório aceno de melhoria dos indicadores macroeconómicos, mas porque vai haver feriados a calhar em dias de semana, porque vamos passar o tempo entretidos com o mundial de futebol no Brasil…Sempre a ideia fatalista e sociologista de que é de fora que a felicidade nos virá. E depois admiram-se que seja esquizofrénica a relação que nós, os portugueses, mantemos com o tempo: oscilamos entre a nostalgia dolente de um passado fixado em lamento e um futuro sebastiânico, feito de alvoroço e de arroubo.
Que o ano 2014 parece apresentar-se, como estes últimos, com má cara? Mas somos nós que temos que pôr boa cara – que não há ano sem ter dentro um homem que seja. Façamos de nós o que o tempo permite – isto é, tudo – e o ano que está a chegar será o ano da nossa vida – um ano de encontro. Sim, que é de encontro que andamos precisados e não de fugas. Não é ali nem depois que começará a nossa vida. É aqui e agora que ela começa e se realiza.
Ah, sempre querem, como a tal senhora, saber qual então o segredo para o meu alegado bom aspecto? Antes de mais se algum aspecto ainda tenho ele deve-se mais à diligência dos genes que a qualquer outra coisa. Mas há, sem dúvida, um segredo, que infelizmente tardo em assimilar, para a eterna juventude da alma que se espelha no corpo: é darmo-nos a nós sem darmos pelo tempo.
É em nós que está a possibilidade de sermos felizes e não nos indicadores. Proponho uma birra nacional: mandemos os indicadores às ortigas e façamos a nós próprios essa sublime surpresa de sermos felizes. AGORA. Sem esperar pela passagem de ano.
Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”