A Maria tem 7 anos e uma perturbação do espectro do autismo (PEA). É uma menina alegre, mas chega à escola com sono e a professora queixa-se que ela está muitas vezes distraída e que se irrita facilmente quando as coisas não acontecem como queria.
Quando regressa a casa adora ver vídeos no YouTube e fica tão absorvida que há sempre conflitos quando chega a hora do banho, pois não quer parar o que lhe dá prazer. Depois do jantar e chegada a hora do deitar parece não ter sono nenhum! Vai fazer a higiene e vestir o seu pijama preferido, pois só gosta do toque de um em particular.
Contrafeita porque não tem sono e não quer ficar sozinha no quarto, tenta adiar o deitar e só acede se a mãe se deitar ao seu lado, para que possa enrolar o dedo no seu cabelo até adormecer. A mãe, apesar do ritual desconfortável, lá acede para ver se a Maria adormece depressa, pois sabe que dali a poucas horas a filha vai voltar a acordar por minutos, que se poderão converter em horas, até adormecer novamente.
Dormir “a noite toda” é um desafio para muitas famílias, em particular quando nelas encontramos uma criança com uma PEA. Esta caracteriza-se, sumariamente, por dificuldades na interação social e na comunicação (como na compreensão de instruções e expressão de necessidades), pelo foco em interesses restritos e comportamentos repetitivos e pela sensibilidade alterada a estímulos ambientais, que podem interferir na rotina do deitar. Sabe-se que têm ainda alterações na produção da melatonina, a hormona que promove o sono e que é produzida ao anoitecer: de dia está aumentada, o que faz com que o sono surja em momentos inesperados, e à noite está diminuída, o que reduz a sonolência necessária para adormecer e só acordar de manhã.
Com isto em mente, tem de se desenhar uma higiene do sono à medida destas crianças. Além das que já conhecemos (evitar produtos com cafeína e não expor a écrans ou luz azul perto do adormecer, sestas apenas relativas à idade do desenvolvimento…), devemos apostar em:
- Manter o horário de deitar e acordar regular durante toda a semana, até nas férias (aqui pode haver um ligeiro ajuste de cerca de 1h face ao horário habitual);
* Tomar o pequeno-almoço perto de uma janela, para que a luz do sol reduza a melatonina de dia – a Maria vai estar mais alerta na escola e com o humor mais estável;
* Ao entardecer, estruturar as rotinas para evitar discussões e que a criança fique demasiado excitada – a Maria pode tomar banho logo ao chegar a casa e depois vê os vídeos, com tempo limitado e pré-definido;
* Rotinas claras e bem definidas ajudam a perceber o que vai acontecer a seguir e reduzem conflitos – os pais da Maria podem dispor cronologicamente imagens das atividades que ela fará depois do jantar, para ela consultar e saber a que se segue;
* Atender aos estímulos ambientais que podem incomodar ou excitar a criança (barulho, luzes…) – a Maria poderá ter mais pijamas do tecido que não a incomoda;
* Os rituais para adormecer são geralmente o que leva os pais a procurarem ajuda especializada. O ideal é que estes possam ser feitos sem a presença ou desconforto de terceiros, pois vão ser necessários ao adormecer e durante a noite – o enrolar o dedo no cabelo da mãe exige não só a presença da mãe durante a noite como a magoa – uma solução pode passar por encontrar uma boneca com o cabelo com uma textura semelhante ao da mãe, para que o ritual transite para o objeto.
Nas PEA não há receitas mágicas. Todas as crianças têm características que as tornam fantásticas e outras que são mais desafiantes. Encontrar forma de as ajudar a descansar para nem sempre é fácil, mas é possível. E crianças descansadas são crianças mais felizes e estas são as que têm, consigo, famílias mais capazes de as ajudar a brilhar!
Mafalda Leitão
Psicóloga especialista em Psicologia Clínica e da Saúde e psicoterapeuta; pós-graduada em Ciências do Sono pela Faculdade de Medicina de Lisboa; coordenadora do Núcleo de Perturbações do Sono do PIN – em todas as fases da vida.