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RISCOS E DESASTRES…

Ernani Balsa

O ritmo da política ou é lento ou frenético, raramente cadenciado. Os políticos, nomeadamente quando têm o poder e se deixam contagiar por uma necessidade obsessiva de o manter a todo o custo, têm a tendência, por um lado, a criar uma lenta progressão dos acontecimentos, senão mesmo a travá-los para os fazer coincidir com os seus calendários de interesses, ou por outro, a precipitá-los de tal modo que não dão espaço e tempo a que os cidadãos se retenham e analisem as suas intenções e decisões. É uma técnica apurada de confundir, mesmo os mais atentos, e evitar que se detenham num entendimento completo das suas acções governativas ou colaterais.

Vem isto a propósito do discurso do Primeiro-ministro, enquanto líder do PSD, na tradicional festa do Pontal, no Algarve, que assinala a rentrée política, após aquele período a que se convencionou chamar de “silly season”, talvez porque a estupidez não pode ir de férias. As suas declarações, duma insistência doentia, sobre as decisões do Tribunal Constitucional, não teriam gravidade por aí além, se ele não fosse simultaneamente o chefe do governo. Desta vez, preocupado, como sempre, em encontrar nova terminologia para se referir às dificuldades que essas mesmas decisões podem ou não criar à estratégia governamental, decidiu referir-se a um “risco constitucional”,

Considerar as decisões de um órgão de soberania, parte integrante do edifício da nossa democracia, como podendo constituir um “risco”, logo em relação a uma instituição que tem por dever zelar pelo cumprimento da Constituição da República, não deixa de ser preocupante.

A um dirigente partidário concede-se a liberdade de ser excessivo ou inconveniente, de difundir opiniões controversas ou mesmo abusivas, mas quando esse dirigente acumula as funções de Primeiro-ministro, há que ter um mínimo de respeito pela responsabilidade que esse cargo lhe deve impor. Ter-se-á esquecido o Primeiro-ministro que ao aceitar o cargo que tem, jurou respeitar e defender a Constituição?… O cidadão, dirigente partidário, Passos Coelho tem a liberdade de não concordar com o texto da Constituição e até sentir-se no direito de lutar pela sua revisão, mas não se pode esquecer que o mesmo cidadão, ao ser investido no cargo de Primeiro-ministro, foi precisamente sobre a letra e forma dessa mesma Constituição, que fez juramento de a respeitar e defender. Como é então possível que, sabendo que isso é um dever e simultaneamente estando consciente que ao Tribunal Constitucional compete decidir sobre a constitucionalidade das leis, ousa considerar um “risco” o facto de estar subordinado ao cumprimento das decisões desse órgão de soberania!?… Como é que cumprir a Constituição da República pode ser considerado um “risco constitucional”, sendo esse cumprimento um dever de todo e qualquer cidadão e, por ordem de razão, ainda mais de quem preside ao Governo da República?!…

É evidente que o “risco” a que se refere não reside na Constituição, mas antes na patológica obsessão de propor leis que ferem o espírito da lei maior da República, uma obsessão que, por ser recorrente, ascende a provocação inaceitável.

Mas ainda o rescaldo de mais este caso não se tinha extinguido, já outro surgia, ainda relacionado com a famosa novela dos “swaps”. Não se sabe como nem porquê e ainda menos por quem, documentos referentes a algumas destas operações, estas sim, de risco, terão sido destruídos na Inspecção Geral de Finanças (IGF). Rezam, no entanto as normas quanto a este procedimento, que os documentos abrangidos pelas mesmas, devam ser conservados pelo período de vinte anos e não apenas três, como terá acontecido no caso presente. Claro que ninguém com o mínimo de honestidade intelectual poderá deixar de ponderar sobre a “extrema conveniência” desta destruição de documentos tão controversos e sensíveis… A quem interessará este “deslize”, não é o que mais nos deve preocupar, pois os putativos beneficiados não serão poucos e poderão estar em qualquer lado das barricadas que normalmente de degladiam em acusações, tipo “a culpa foi do anterior governo, mas não, a culpa é do actual”… Já estamos habituados a estes duelos de defesa das honras feridas, em que nenhum dos intervenientes é inocente… Interessa sim, reflectir sobre que tipo de Estado temos nós, que máquina administrativa, ao mais alto nível, permite que estes pérfidos jogos de pouca vergonha e empacotamento da verdade, se instalem no seio do próprio governo e ninguém seja responsabilizado nem punido. A este nível, é tudo gente honesta, acima de qualquer suspeita e credores duma respeitabilidade a toda a prova, pessoas de grande mérito intelectual e humano, dignos das mais profundas vénias e títulos honoríficos e académicos… mas que as coisas acontecem, não há dúvida nenhuma e não serão certamente os assistentes administrativos e outras categorias profissionais mais modestas, a quem as culpas sempre encaixam melhor, os responsáveis por tão inaceitáveis práticas.

O cidadão a tudo assiste e pergunta-se, incrédulo, se “eles”, como geralmente são designados os verdadeiros culpados que todos sabem existir mas não se lhes conhece a identidade, pensarão que somos todos parvos e andamos aqui a aparar toda e qualquer artimanha deste ou de pior calibre. A tudo assistimos e a vida continua, sem que o mínimo sentido de vergonha e pudor atinja essas sumidades ocultas. E nós deixamos que o Estado, que somos nós todos, viva nesta podridão, neste lamaçal e nesta mentira continuada e glamorosamente engalanada duma nobreza putrefacta…

Até quando?…

Por: Ernani Balsa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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