A TABUADA

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J.Antunes de Sousa

A obsessão maníaca pelo défice já se viu no que dá: cada vez estamos mais deficitários. É, afinal, no que dá esta nossa provinciana fixação na estatística: cada vez estamos mais longe do resto da Europa. Tanto que até os imigrantes de Leste, conhecidos pela boa boca, começaram já há bastante tempo a debandar. E se isto é assim em tudo, é-o particularmente na Educação.

Mas, que diabo, o que importa é ombrearmos com os demais nos indicadores. Temos um ratio de sucesso escolar muito baixo? Toca a passar o maior número possível de alunos, que, assim, não tarda, teremos equilibrado as estatísticas e ficaremos bem colocados no ranking dos mais espertos. Que esperteza é o que não nos falta – só que é saloia essa esperteza, um típico expediente dos fracos. Levamos décadas a dormir e, de repente, desatámos a correr a toda a brida – mas a pressa dá sempre disparate. Além de que, como diz Séneca, «chega primeiro não quem vai mais depressa, mas quem sabe para onde vai». E este artificialismo estatístico na Educação, na pressa de não perdermos o pelotão europeu, vai produzir uma geração oca, obviamente desorientada e frustrada.

Que se passa, afinal? Isto: toda a minha gente passa. E um professor para “chumbar” (palavra maldita!) um aluno tem que arriscar o seu bom nome em vários impressos de justificação junto do Ministério. Resultado: o professor é um estorvo e o estudo uma maçada a evitar a todo o custo. E que dizer dos famosos exames de aferição do 9º ano? Que não aferiam coisa nenhuma porque, não os tomando a sério os alunos, os resultados só serviam para iludir a estatística. Por isso, tarde, mas lá se decidiram a aboli-los – tão flagrantemente inúteis se haviam revelado!

Ah, porque é preciso educar para a criatividade e não, como dantes, para a memória. É, em parte, verdade, mas a criatividade faz-se também da dialéctica entre o estímulo do antecedente e o voo ousado da imaginação. Pergunto: que mal faz saber de cor os nomes dos rios e das montanhas? A questão é esta: só é possível criar a partir dum núcleo configurador – e aí todo o papel da memória.

Instalou-se a cultura da facilidade – que o Ministério converte em facilitismo (a facilidade alimentada pelo próprio sistema). Só que ela está nos antípodas de uma cultura da felicidade. Para que a felicidade ocorra é preciso pormo-nos a jeito – ter sorte dá muito trabalho. Isto de muitos alunos chegarem ao último ano da Faculdade sem saberem redigir correctamente um parágrafo é bem o sinal doloroso do monstro que este laxismo oficial ajudou a produzir. Os trabalhos são quase sistematicamente plagiados (ao que me dizem, há até empresas, devidamente colectadas, cujo serviço é oferecer trabalhos prontos a entregar, desde licenciatura até doutoramento!). O plágio tornou-se endémico e a fraude uma prática em que a imaginação e o requinte tecnológico se casam em aliança quase inexpugnável. E aí está como, na pressa de nos chegarmos à frente, deitamos fora o que era essencial que preservássemos: a nossa consciência colectiva onde radica a nossa segurança identitária – nesse arrivismo pressuroso é a nossa própria memória que se esvai.

O jovem anderseniano a quem pediram que rezasse respondeu que só se lembrava da tabuada. Mas isso não, que não é uma educação fixada exclusivamente na aritmética fria de uma racionalidade asséptica que queremos. Não. À tabuada há que juntar a brincadeira e a poesia. Sem dúvida. Mas, por favor, sob o pretexto da criatividade, não apaguem o núcleo mítico em que a nossa sociedade, que quer ser saudável, tem que fundar-se e sobre a qual terá que revigorar-se a cada momento histórico.

Caso contrário, preparemo-nos para vivermos no contínuo sobressalto do “arrastão”. Porquê? Porque se está a evacuar a memória dos nossos filhos e, qualquer dia, sem âncora mítica a que se agarrem, resvalam para a rua e juntam-se aos gangs – que têm um líder, rituais iniciáticos – tudo o que é da natureza da mitologia. Uma educação que queira ser só tecnológica, pragmática, uma educação que eduque apenas para o fazer (a que agora chamam eufemísticamente “competências”), o que realmente faz é deseducar.

É preciso trazer de volta a memória à Escola – não para fazer dos nossos filhos papagaios, naquele seu psitacismo tonto, mas para os preparar para o voo altivo e sábio da águia. Está mais que estudado: a melhor taxa de sucesso escolar pertence às sociedades culturalmente sólidas e coesas – as que se organizam sobre um chão firme de valores, esses motivos perenes que moldam a nossa alma colectiva.

Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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