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TEMPO NOVO…

Ernani Balsa

Esta ilusão de se passar de ano é mais uma daquelas chavonas que se usam apenas para se dizer o óbvio ou então para não dizer nada, dizendo o que todos dizem. Não sei verdadeiramente se é o tempo que passa ou nós que passamos pelo tempo. O tempo é, de certo modo, uma constante e nós atravessamos a sua dimensão numa outra dimensão que se encaixa na sua métrica. Mas também é verdade, que sendo uma constante, tem uma dinâmica de movimento continuado ou mesmo progressivo e, nesse caso, somos nós que corremos paralelamente ao tempo, na ânsia de o apanharmos durante o prazo de validade das nossas vidas. Há um problema, o prazo de validade não vem impresso na nossa pele, para que nós possamos avaliar em que tempo do tempo teríamos vantagem em o apanhar. O tempo, é portanto, uma variável viscosa e fugidia que nos foge ou nos sobra, consoante os nossos desacertos do seu batimento na máquina precisa e ao mesmo tempo improvável do universo. Utilizamo-lo ao ritmo da sua vontade própria e nunca sabemos se estamos dentro dele ou ele por fora de nós.

Quando se esgota aquilo que se convencionou chamar de um ano, passamos simbolicamente para o seguinte e nessa passagem gostamos de gravar os símbolos de todo um ritual de superstições e crenças. Criamos a ilusão que as coisas que acontecem se arrumam criteriosamente em compartimentos dimensionados à medida do tempo. Que os desejos de um ano não se misturam com os desejos de outro e que o destino obedece a um calendário que fingimos acreditar ser o suporte temporal desse acaso. Nada acontece por acaso, mas é o tempo que o determina e a isso chamamos paulatinamente destino.

Este ano, seguindo uma tradição milenar, o novo ano começou após a décima segunda badalada das zero horas do primeiro dia de Janeiro, o que logo implica uma singularidade assaz estranha. Se a hora que se assinala é a hora zero, porque razão nos referimos e utilizamos as doze badaladas, sendo que as dozes se referem apenas a meio-dia, ou seja ao segundo meio-dia que cada dia contém?… Facilitamos as coisas para não nos confrontarmos com a imperfeição das nossas definições, daquilo que convencionamos ser o mais certo, para não termos de pensar demasiado em encontrar novas e mais correctas formas de representarmos aquilo que é aparentemente indefinível. Zero badaladas! Isso mesmo, como é que iríamos sair deste impasse de pôr um relógio, já de si uma máquina com vontade, não própria, mas das leis da física, a fazer soar as zero badaladas?… Um silêncio, talvez, diria Monsieur de la Palisse, se não fosse ele próprio inteligente, mas como é que se distinguiria a badalada silenciosa das zero horas, de toda a multitude de silêncios a pairar no universo?… Optámos então pelas doze, numa solução de uma imensa falta de espírito criativo, dirão alguns. Outros, não!…

O que atrás ficou dito terá muito de filosofia barata, dirão ainda outros mais atentos e distanciados daquilo a que normalmente se chama de não questões. Fica no entanto a chamada de atenção ao facilitismo, à inércia e ao seguidismo. As pessoas tendem a escolher aquilo que já está escolhido, para não se incomodarem a fazer escolhas. Seguem as tendências expressas, muitas vezes, em previsões que pecam, não menos vezes, por manipulações obscuras que levam a que a preferência vá para a escolha que mais interessa a grupos de influência e de pressão. Em política isto traduz-se por favorecimento daqueles que mais meios têm para influenciar, quer a opinião pública, quer os resultados das sondagens, e que inevitavelmente influenciam um certo tipo de eleitor menos avisado ou então pertencente ao tal grupo dos facilitadores. A ideia de que votar nos que mais sucesso parecem ostentar, partindo do princípio de que já estando à frente, vão com certeza ganhar e serão os melhores, leva-nos à situação que ora vivemos, dois partidos eternamente a revezarem-se em más prestações, a arremessarem as asneiras de uns à cara dos outros e a repetirem ad-eternum a suas políticas que têm de encaixar nos limites do poder financeiro e político internacional, sem nunca ousarem defender o país e aqueles que mais necessitam.

A política tende a ser conservadora, mesmo quando é de esquerda ou adopta outra qualquer etiqueta, porque se acomoda muito facilmente às normas estabelecidas e afina pelo mesmo diapasão comum a todas as tendências. Só se assume como libertadora e insurgente quando consegue sacudir todas essas amarras ao mais ou menos politicamente correcto, quando se indigna verdadeiramente e se torna interventiva em vez de reaccionária, no sentido em que só age por reacção a qualquer impulso exterior que use a linguagem a que se sente formatada. Por isso, mesmo no espectro político actual se nota um ambiente de coexistência bafienta, que embora seja lido como esquerda e direita, deixa grandes dúvidas ao eleitorado e cria um clima nada propício à existência de alternativas, ficando-se pela execrável alternância que nada altera e, antes pelo contrário, cria estados de dependência e de cumplicidade que se realimentam a si próprios, numa espiral de favores e conluios que degradam de ano para ano a vida social e política nacional.

A já tradicional arrumação dos nossos partidos nacionais, entre direita e esquerda, mas que depois induz um nervoso miudinho entre PS e PSD, que umas vezes se consideram partidos do centro e outras vezes de esquerda, por parte do PS e da social-democracia, por parte do PSD, levam a que nada disto ajude o eleitorado a fazer escolhas. Por outro lado, PCP e BE, coabitam o espaço deixado a uma esquerda mais afirmativa, mas acabam por viver de costas voltadas, senão mesmo de prontas, rápidas e insidiosas acusações mútuas prontas a serem disparadas, o que muito contribui para a desconfiança de um eleitorado que gostaria de mudar, mas não acredita na credibilidade destes dois dissidentes de uma esquerda que se queria mais unida. Daí que a via dos movimentos cívicos tenha vindo a ser cuidadosamente explorada na esquerda, como possível ninho de nascimento de uma nova consciência partidária para aqueles que não se revêem definitivamente numa direita do PSD, agrilhoada por um neo-liberalismo feroz e destruidor do humanismo e um centro-esquerda do PS, hesitante, titubeante e constantemente à procura de uma identidade que os atormenta. Há mesmo a declarada intenção do lançamento de um novo partido à esquerda, o Livre, que tentará, segundo o seu promotor, congregar muitas das sinergias desta faixa, que andam desgarradas em hesitações prolongadas ou em estéreis guerras do alecrim e da manjerona que a nada levam. Não sei se esta será a melhor solução, mas sei que o imobilismo é a pior receita para a mudança e Portugal precisa desesperadamente de uma.

Os portugueses precisam de alternativas em vez de alternância, mas precisam de sentir que a mudança necessária seja efectivamente uma mudança de rumo, de procedimentos e de objectivos. Seria bom não almejarmos uma revolução, com todos os ingredientes díspares e aleatórios que sempre transportam para uma normalidade e uma sã convivência que seria bom preservar, mas temos de ousar fazer outras escolhas, fazendo entender àqueles que têm até agora sido os actores principais, que o público os vaia e já não lhes acha piada nenhuma. Daqui até ao seu escorraçar da cena política, já pouco falta. O público já está farto que sejam apenas eles a dar as deixas para as piadas e os mesmo a rirem-se de si próprios, num espectáculo decadente e cruel. A sala já está quase vazia e eles continuam a cobrar bilhetes, a sugar o descontentamento de quem já nada tem para sobreviver. Um dia o teatro vem abaixo e nem os figurantes se salvam… É bom que não cheguemos a tão inútil tragédia… Esforcemo-nos por encontrar um tempo novo nesta fita do tempo que há tempo demasiado se arrasta…

Por: Ernani Balsa
“escreve sem o acordo ortográfico”

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