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Um país zangado

Golpes | Colecção Berardo / CCB | img: Ernani Balsa

Há um clima generalizado de contenda interna e externa nas pessoas. A crise criou-nos marcas indeléveis de uma agressividade latente e de reacções de autodefesa que se revelam em prontas e amargas respostas a tudo o que nos pareça uma crítica ou uma acusação que, embora não existindo, nos fazem disparar respostas e comentários amargos e agressivos.

O facto de nos sentirmos continuamente acossados por revelações e notícias que nos afectam o nosso percurso de vida, de constantemente sermos alvo de acusações e reprimendas pelo nosso comportamento social a montante da crise e por isso podermos ser responsabilizados por todo o mal que se abateu sobre nós, tudo isto somado a uma sensação de impotência e irreversibilidade dos danos causados, como se fôssemos nós os nossos próprios denunciadores, carrascos e vítimas, remete-nos para um estado patológico de auto análise e auto condenação por tudo o que nos acontece, mais do que a todos os outros. E isto, porque a elaborada estratégia de criação de fracções e fricções entre diversos grupos sociais, sejam entre o público e o privado, entre novos e velhos, entre civis e militares, entre estudantes e professores, entre a magistratura e o cidadão comum, ou mesmo ainda entre estudantes e jovens trabalhadores, acabou por gerar na sociedade portuguesa um sentido de vitimização e culpabilidade, confuso e indefinível, que nos leva a descarregar sempre sobre terceiros a culpa das nossas próprias frustrações e fraquezas.

Vivemos todos em estado de angústia, mais controlada para uns, menos para outros com um sentido de autodefesa mais eficiente ou, pelo contrário numa estonteante depressão que nos bloqueia a capacidade de reconstruirmos a esperança e o sonho que alimentámos durante as nossas vidas. No meio de tudo isto, as relações interpessoais, com menos evidência naquelas que mantemos com o nosso círculo mais fechado de amizades e no seio das nossas famílias, sofrem de uma depreciação incontrolável e os nervos à flor da pele empurram-nos para autênticos ataques relacionais, de cada vez que nos confrontamos com pequenos focos de má interpretação das críticas ou simples chamadas de atenção, até nos assuntos mais simples e fúteis. Explodimos e disparamos rápida e cegamente argumentos de cariz agressivo e dilacerante, sem nos apercebermos da inusitada violência e desproporção dos mesmos.

Se há coisas que eficientemente foram conseguidas pelo poder, foi pôr um país inteiro zangado com ele próprio, mas sempre descartando as culpas para os mais fracos de cada sector ou de cada contenda que se levanta. A cultura do mais forte e do mais fraco, do que nós consideramos privilegiado e daqueles que se sentem mesmo alvo das mais torpes injustiças, do que defende a todo o custo a cultura desenfreada do sucesso a todo o preço e daqueles que ainda resistem a considerar que o humanismo é o melhor regulador duma sociedade, é o melhor barómetro das nossas relações interpessoais e de grupo. Somos um país em constante convulsão com o nosso semelhante e em desespero connosco próprios.

Ainda há dias, saía de um parque de estacionamento com uma amiga e quando ela foi pagar à máquina automática, a máquina não lhe aceitou o dinheiro. Dirigiu-se à cabina de atendimento à saída e comunicou à funcionária que a máquina estava avariada. A máquina não está avariada, dispara-lhe rispidamente a funcionária. A máquina só está fora de serviço, o que é diferente. É que para os clientes poderem fazer os pagamentos na máquina, ela tem de estar abastecida de moedas e foi isso que a minha colega foi fazer… Ponto final.

A urbanidade, afabilidade e até mesmo os sorrisos nas relações entre as pessoas, o público e o privado, o funcionário e o cliente, o Estado e o contribuinte, também não estão avariadas… estão simplesmente fora de serviço, só que não há ninguém para abastecer estas relações de civilidade, boa disposição e sorrisos, como a senhora do parque de estacionamento abastece a máquina com trocos… E assim continuamos todos zangados e prontos a explodir ao mais leve e ingénuo comentário ou interpelação…

Ernani Balsa
“escreve sem acordo ortográfico”

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