Há muito que se não via tamanho sobressalto, tão grande aflição em terras do Tio Sam. Creio que nem mesmo com o furacão Katrina que quase varria do mapa a cidade de Nova Orleães. Nem mesmo, se calhar, nos hediondos ataques às torres gêmeas. Nem sei mesmo se o trágico envolvimento no Vietname, por exemplo, para não falar dos atoleiros do Afeganistão ou Iraque terão provocado tantas insónias no Pentágono. E tudo por causa de dois rapazinhos com cara de meninos de coro.
De repente, eis que o país que a si próprio arrogara a divina missão de guiar o resto do mundo pela senda das boas maneiras e da sã convivência democrática e da justiça, dá por si nu, literalmente de calças na mão, na principal avenida do mundo e que dá pelo nome de internet: todas as baixezas e misérias que só à latrina era dado testemunhar ei-las expostas ao mais alvar voyeurismo de todos.
Espectacular assalto aos arquivos secretos dos EUA? Nem isso se usa já, que são bem mais subtis e igualmente eficazes os meios de recolha de informação junto dos estados que configuram ameaça. E há sempre um insuspeito e solícito funcionário pronto a fazer um jeito – que já lá vai o tempo romântico do amor à pátria. Nada de generais – que isso era estrondo a mais e não há sequer necessidade de fazer tanto sangue: para dominar um adversário numa sessão de luta pessoal não é preciso faca nem pistola – basta torcer-lhe o dedo mínimo!
Os maiorais dos países rivais estudam e elegem criteriosamente o alvo, pois sabem bem o que são necessidades e que não há maneira mais eficaz de vergar um vassalo de espinha mole do que acenar-lhe com um saco de luzidias moedas – muito mais do que os trinta dinheiros que viraram a cabeça do pobre Judas Iscariotes.
Ainda há poucos anos era possível blindar segredos, confinando-os a um número restrito de protagonistas – agora não: é tudo em rede. E todos sabemos para que serve a rede: isso, para pescar. Sim, a rede é fantástica, mas é também uma perigosa armadilha. Que é muito proveitosa porque oferece oportunidades imprevistas a um número imenso de gente? Sem dúvida, mas também lhes serve de borla o veneno letal da inconsciência e da abdicação.
Como já acontecera com a fissão nuclear: propiciou avançadas técnicas de terapia de graves doenças, mas equilibrou a contabilidade com a pavorosa e devastadora tragédia de Hiroshima e Nagazaki.
E nisto, como em outras coisas, lá vêm sempre os amantes da estética: roubou? Mas fê-lo com estilo! Traiu? Mas foi em prol da sacrossanta liberdade de imprensa que traiu. Esquecendo que tal valor, assim absolutizado, se tornou num insidioso instrumento de indiferenciação – de destruição dos estados. E sabem quem mexe os cordelinhos de tão benfazeja missão de abolir as fronteiras? Aposto que não há um entre os meus caros leitores que não tenha a resposta na ponta da língua: o capitalismo liberal, sim, meus amigos, e cujo tenebroso avatar é essa assombração que dá pelo nome de mercados.
O dinheiro erigido a deus das almas penadas desta desencantada modernidade é o responsável material pela global deflagração que se perfila.
E este episódio recente da fuga de informação sensível dos EUA é apenas (?) um sinal – inquietante e grave, por sinal. Sinal, mais um, de que tudo se sacrifica no altar do deus-dinheiro no qual depositamos a confiança última. Mas confiança em quê se tudo o que nos resta se resume a um efémero encantamento? Como depositar a única confiança em algo que tão flagrantemente inseguros nos faz sentir?
E foi, quem sabe, a busca desta ilusória segurança do dinheiro que levou estes rapazes, Manning e Snowden, a deixarem-se seduzir pelo aceno convidativo dos predadores de consciências, pondo, assim, em xeque a segurança dos seus concidadãos e, ironicamente, a sua própria.
E que não venham os outros estados com a hipocrisia da virgem ofendida censurar aos EUA o que eles próprios não fazem…apenas porque não têm capacidade para tal. Porque, tratando-se de serviços secretos, cada país faz o que pode. Nem mais nem menos.
Não, estou, contudo, e isso que fique bem claro, a fazer a apologia dos métodos utilizados pelos americanos, mas tão-só a denunciar a mistificação em curso: não foi por uma Ética da Informação que estes funcionários deram com a língua nos dentes e desviaram documentos, como o não foi no caso do mordomo do papa Bento XVI – foi por interesse, ou seja, por dinheiro: Manning is Money(ing)! Alguém os seduziu e comprou.
Entretanto, os EUA têm esta estranha capacidade de gerar dentro de si ameaças à sua própria segurança e sobrevivência – e aí a sua vulnerabilidade, mas também a sua grandeza.
Perguntar-me-ão: tem provas de que foi mesmo assim? Não. E dúvidas? Também não.
Por: José Antunes de Sousa
“escreve sem acordo ortográfico”